Segundo Hildebrando Accioly, “ o agente diplomático tem deveres para com o seu próprio Estado e para o Estado junto ao qual se ache acreditado. Os primeiros podem resumir-se em três categorias: de representação, de observação e de proteção.(...) Já com relação ao Estado onde esteja exercendo suas funções, o agente diplomático tem obrigações de outra ordem e que um velho internacionalista definiu como sendo deveres de lealdade para com o soberano estrangeiro.”[1]
Apesar de a linguagem de nosso grande internacionalista refletir matizes de outra época, pouco há a acrescentar às funções diplomáticas, não fora a ênfase moderna da promoção, junto ao país em que o agente diplomático está acreditado, dos interesses econômicos, comerciais, financeiros e industriais do Estado que o acredita.
Com o progresso das comunicações, e o geométrico crescimento na sua rapidez, as relações diplomáticas em geral revestem atualmente intensidade, abrangência e presteza que as fazem diferir, pela sua própria natureza, de situações anteriores. Neste aspecto, a progressão foi tão acentuada a ponto de ser sentida em uma vida funcional, o que corresponde a pouco mais de o espaço assignado a uma geração.
Assim, no umbral dos anos sessenta, antes da introdução do telex[2], as comunicações eram recebidas pelos correios e telégrafos locais, tanto as ostensivas, quanto aquelas em código. Destas últimas, cabia a decifração e transmissão à chefia da missão, ao funcionário diplomático júnior aí lotado.
Começavam a ser empregadas na datilografia as máquinas elétricas IBM, com esfera, mas da maior parte da tarefa se incumbiam as máquinas de escrever Remington. A feitura de um ofício, de uma nota ou de uma carta, com as cópias carbono indispensáveis, não constituía exercício simples e fácil. Além de envolver a mais de uma pessoa, os erros, de resto assaz comuns, forçavam em geral repetições de mais de uma página.
Muitas das comunicações das missões diplomáticas para com a Secretaria de Relações Exteriores (i.e., o Itamaraty, que então ficava no Rio, na rua Marechal Floriano) seguiam por mala diplomática. Contendo a respectiva guia do conteúdo, levavam a correspondência oficial e cartas dos membros da Missão, além de volumes anexos, como publicações, livros, etc. Ainda nesse tempo, com as restrições ao uso dos telegramas oficiais, a mala era o conduto importante das avaliações da embaixada sobre a realidade local. Atendidas as conotações locais e o respeito às normas da Convenção de Viena do Estado junto ao qual estava acreditada a Embaixada, as malas podiam ser levadas por correios diplomáticos ou então confiadas a serviços de transporte (de ordinário, por navio ou trem; a utilização da via aérea é mais moderna). O sigilo poderia estar mais seguro nessa correspondência, que ia protegida, em invólucros de couro ou de lona, com arame e selos de chumbo.
Com a entrada do telex e o avanço no transporte aéreo, o compasso se tornou mais rápido. Foram introduzidas máquinas que substituíam, em grande medida, a intermediação humana na cifração e decifração dos despachos e telegramas. Com o correr dos anos, a lentidão do ofício, ultrapassada pela maior simplicidade nos sistemas de transmissão, fê-lo rarear como opção de comunicação, a despeito das vantagens que pudesse ainda apresentar na preservação do segredo do respectivo conteúdo.
Também no que concerne às cópias de trabalho e reprodução de documentos, do rústico thermo-fax[3] da encruzilhada dos cinquenta e sessenta se faria o avanço para o xerox, com a crescente sofisticação de sua capacidade reprográfica.
A revolução tecnológica, que se acentuou nas decadas de setenta e oitenta, com o progresso dos sistemas de computação, contribuiria para a transformação da missão diplomática nas suas externalizações e nas injunções que a instantaneidade da comunicação traria para a consecução de suas funções.
Em épocas pregressas, as instruções norteavam em muitos de seus aspectos a ação do chefe de missão. Com o paulatino avanço tecnológico, foi também gradualmente restringido o tempo necessário para a tradição da informação. No entanto, ao contrário de alguns, que tolamente acreditam na possibilidade de os ministérios do exterior prescindirem de agentes diplomáticos, a complexidade da intermediação humana é um fator irremovível. Se o grau da informação do agente – e de sua capacidade de dirimir dúvidas junto ao respectivo serviço exterior – se incrementaram dramaticamente, a relevância da pessoa do agente diplomático, com os seus contatos, experiência e conhecimento das possibilidades e limitações locais persiste como fator insubstituível. Para tanto a ciência do mister e a habilidade do agente diplomático continuam a ser características indispensáveis, tanto para o nosso proto-diplomata, na pessoa de Alexandre de Gusmão, moço de escrivaninha do D. João V e imortal negociador do Tratado de Madri (que conformou os traços do Brasil de hoje), quanto para os diplomatas de ontem e de hoje, a exemplo do Barão do Rio Branco, vencedor dos laudos arbitrais com a Argentina e a França. Para os modernos, me louvo da lição de Carlos de Laet, deixando a sua eventual inclusão para quando além de outras consagrações também tenham a da morte.
Feita esta indispensável apresentação das funções diplomáticas e do caráter perene dos princípios supra-apresentados na exação de nosso grande publicista, cabe breve histórico das relações das duas principais potências das Américas. Quando nos albores do século XX, por iniciativa do Barão do Rio Branco, as relações diplomáticas passaram à categoria de embaixada – o que na época era a exceção – elas já se assinalavam pelo bom entendimento.
Na era pós-Rio Branco, o Brasil participaria, junto com os Estados Unidos, na fase final da Grande Guerra, havendo participado da Conferência de Versailles, em delegação chefiada por Epitácio Pessoa, ao lado das potências vencedoras no conflito contra os Impérios Centrais. Durante boa parte do século XX, a diplomacia brasileira manteve postura de discrição e de boas relações com Washington. Tal relacionamento daria bons frutos na ajuda americana à construção da Usina de Volta Redonda, que tinha sido alicerçada pela cooperação do Presidente Getúlio Dorneles Vargas cedendo temporariamente base no nordeste aos americanos, o que teve efeito relevante na parte logística da estratégia aliada contra a Alemanha hitlerista.
Especula-se, inclusive, que o Presidente Franklin Delano Roosevelt apoiaria o Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança da nascente Organização das Nações Unidas. Infelizmente a sua morte em 12 de abril de 1945 nos privou deste precioso e decisivo apoio, e a cadeira foi acabar com a França de Charles de Gaulle, que em junho de 1944 recobrara a independência, depois da longa noite da ocupação nazista e do governo colaboracionista do Marechal Pétain.
As relacões entre o Brasil e os Estados Unidos se pautaram pelo alinhamento entre as duas diplomacias até os anos finais do governo de Juscelino Kubitschek. Por causa da desastrosa visita do vice-presidente Richard Nixon a países da América do Sul em maio de 1958, quando enfrentara manifestações de protesto no Peru e na Venezuela, e em consequência da sentida crise nas relações com Washington, o Presidente Juscelino Kubitschek enviou carta ao presidente Dwight Eisenhower. Recebida favoravelmente a iniciativa, em meados de 1960 seria formalmente lançada a Operação Pan-Americana pelo Presidente Kubitschek. Com o suporte diplomático do Itamaraty, a parte econômica da iniciativa ficou a cuidado de equipe sob a direção do Ministro Miguel Ozorio de Almeida. No curso desta ação, surgiria posteriormente já no governo de John Kennedy a Aliança para o Progresso.
Com a eleição de Jânio Quadros e seu efêmero governo, as relações brasilo-americanas ganhariam outras feições, sob a égide da Política Externa Independente. Do alinhamento pregresso, a nova postura exterior do Brasil foi corroborada pela Administração de João Goulart (1961 – abril de 1964). Assinalou-se, sobretudo, com viés crítico a aspectos da política estadunidense, assim como com a desvinculação com o precedente apoio ao regime colonial português em terras africanas.
Sobrevindo o regime militar, nos tempos do general Castelo Branco e do Ministro Juracy Magalhães, o Brasil se associou à chamada Força Interamericana de Paz, alinhando-se assim à intervenção do governo de Lyndon Johnson, na República Domicana (abril/maio de 1965).
Nos anos setenta, no governo do general Medici, acentuou-se a aproximação Brasil- Estados Unidos, favorecida pela Administração Nixon. Na sua visita à Casa Branca, o general-presidente ouviria de Nixon a frase “para onde for o Brasil, irá a América Latina”. Eram também os tempos de chumbo do início do cerco ao regime Allende no Chile, com a ativa participação do Assessor Especial Henry Kissinger. Já no governo do general Ernesto Geisel e do seu Ministro de Relações Exteriores, o embaixador A.F. Azeredo da Silveira, se alternaram duas fases contrapostas: as boas relações no final do governo Nixon e de seu vice-presidente Gerald Ford – são os tempos da troca de cartas dear Henry – dear Tony[4] – e, em seguida com a eleição de Jimmy Carter para a presidência, o inferno astral para o regime militar do ativismo do político georgiano em matéria de direitos humanos. Há pouco veio a lume um canhestro lapso do Secretário de Estado Cyrus Vance, que, ao ensejo de audiência com o general-presidente, esquecera no gabinete de Geisel memorandum com resumo bastante negativo da política exterior brasileira na época. A trapalhada de Vance, consoante a prática do Itamaraty, não seria instrumentalizada, nem muito menos divulgada.
Por sua vez, os anos oitenta, marcados no Brasil pela disparada da inflação, e nos Estados Unidos, pela administração do republicano Ronald Reagan, não assinalariam grandes problemas nas relações respectivas.
O quadro do relacionamento Brasil – Estados Unidos se caracterizaria nos anos subsequentes por postura de mútuo respeito, sem sombra das constrangedoras relações carnais do governo argentino de Menem, e seu apoio incondicional a todas as iniciativas estadunidenses.
O próprio Presidente Luiz Inácio Lula da Silva manteria, até mesmo antes da posse, relações de cordialidade com o seu homônimo George W. Bush, entendimento esse facilitado por certas similitudes nas respectivas atitudes intelectuais.
Já a relação com Barack Obama teria alternâncias semelhantes talvez à montanha russa, com a proclamação de Lula como ‘o Cara’, a que se sucedeu mais tarde as desinteligências motivadas pelo ‘ amigo’ de Lula, o iraniano Ahmadinejad, com peripécias demasiado conhecidas.
Ao cabo disso tudo, surgem os vazamentos – que é fraqueza norte-americana – do site WikiLeaks. Esse tipo de divulgação se situa no oposto da diplomacia, porque privilegia o particular extraído de seu contexto. A leitura de muitas dessas supostas revelações descerram na verdade as cortinas de esquálido palco em que se expõem indiscrições e por vezes sandices seriais, como se o prurido de revelações da estupidez humana e do ingente esforço em angariar as simpatias dos representantes da Superpotência fosse de alguma pertinência para o estudo da história diplomática.
No que tange ao Brasil, as magras notícias podem dizer bastante sobre a qualidade dos excertos futuros. Posto que não tenha procuração para defender o Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães Neto, Ministro-Chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos , é tão falsa quanto ridícula a assertiva de que ele ‘odeia os Estados Unidos’. Como Secretário serviu no Consulado em Boston e na Embaixada em Washington, como Conselheiro, em New York, na Missão junto às Nações Unidas,e cursou o Mestrado de Economia pela Boston University. Também em terras do Norte, Samuel Pinheiro Guimarães casou-se com a americana Susan, saudosa mãe de seus quatro filhos.
A propósito, é preciso distinguir entre determinadas nuanças. Como diplomata, Samuel sempre defendeu as causas brasileiras, como deve ser a tônica de todo diplomata do Itamaraty. O patriotismo pode estar fora de moda em alguns círculos, mas tal não semelha deva constituir motivo para exprobar o Embaixador Guimarães pelo êxito de suas iniciativas diplomáticas, em especial o arcabouço do Mercosul, o estreitamento das relações com a Argentina, a maior ênfase às relações com o nosso subcontinente, o estabelecimento de novas organizações na América do Sul e a consequente revalorização dos laços com a América Latina. Por outro lado, se iniciativas danosas para o Brasil como a Alca foram descartadas, as relações com os Estados Unidos foram igualmente desenvolvidas, posto que em pé de respeito mútuo e de igualdade.
[1] Hildebrando Accioly, Tratado de Direito Internacional Público, 2a. Edição, Rio de Janeiro, 1956, vol. I, pp.460 e 463.
[2] As referências, aqui necessariamente sumárias, se reportam ao serviço diplomático brasileiro.
[3] Um antepassado do xerox, com precária impressão de letras e imagens em folhas cor de carne.
[4] O Ministro Silveira empenhou-se, através de correspondência amistosa e menos formal do que as notas diplomáticas, em embasar estreitas relações entre Itamaraty e State Department, na pessoa de seus chefes respectivos.
quarta-feira, 1 de dezembro de 2010
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