A continuada procrastinação do senhor Luiz Inácio Lula da Silva no que concerne à questão do asilo a ser concedido a Cesare Battisti não causa perplexidade.
Tal reação implicaria falta de compreensão, espanto, ou até mesmo confusão do governo brasileiro que ele ainda representa, neste seu derradeiro dia de mandato.
Infelizmente, os muitos meses que se arrastam desde a decisão do Supremo Tribunal Federal, que reconheceu ao Presidente o pleno direito de decidir sobre a matéria, não se devem às usuais razões que as administrações invocam quando tardam em manifestar-se ex-officio.
Houve sobejo, em verdade demasiado tempo, para que o Presidente Lula batesse o martelo. Afinal, para quem semelha tão ávido de valer-se das prerrogativas do cargo de Primeiro Magistrado da República, provocaria em outros estranhável assombro essa inusitada, aturada tardança, se o real motivo não transpirasse e de forma pouco enaltecedora para tão festejada e adulada presidência.
Diferir esperadas e relevantes decisões pode ser recurso extremo em determinados assuntos, em que uma tomada de posição pode contribuir para acirrar os ânimos, sobretudo de facções internas, antecipando choques que o presidente poderia evitar, contornando pressões de grupos sinceros mas radicais. Foi o que fez Getúlio Vargas, nos albores do tenentismo, quando esses jovens chefes militares desejavam implantar medidas revanchistas que vão ao arrepio dos costumes nacionais.Naquele momento, a habilidade de Vargas faria cair no olvido os arroubos intempestivos.
Não é o que caracteriza a questão Cesare Battisti. Deu-se ao assunto em tela toda a atenção devida, passando pelo Ministério da Justiça e o Supremo, até cair de maduro no regaço do Palácio do Planalto.
Cesare Battisti foi preso em 2007, a pedido do governo da Itália. Estava no Rio, mas foi transferido para o presídio da Papuda, no Distrito Federal, onde até hoje permanece. Em janeiro de 2009, é concedido refúgio a Battisti. O italiano passa a ter o status de refugiado político, pelo voto do então Ministro da Justiça, Tarso Genro. Evita-se, por conseguinte, a sua extradição para a Itália. Ainda em janeiro de 2009, o Presidente Lula defende a posição de seu Ministro, qualificando a questão de “soberania nacional”. O Presidente da Itália, Giorgio Napolitano, expressa “amargura” pela decisão.Divulga, por outro lado, carta sua ao Presidente Lula, o que não é praxe em correspondência de chefes de Estado. Em novembro de 2009, o STF opta por anular o refúgio, em decisão contrastada. Considera que os crimes cometidos por Battisti foram comuns e não políticos. Determina, contudo, que a decisão quanto à extradição cabe ao Presidente Lula. Em dezembro de 2009, sob pressão italiana, o STF recua. Decide agora que Lula deve respeitar tratado entre Brasil e Itália, o qual estipula que o governo só pode manter Battisti aqui se ele sofrer “fundado temor de perseguição política”. Em dezembro de 2010, Lula recebe parecer da AGU recomendando a permanência no Brasil de Cesare Battisti.
Desde a concessão do refúgio a Battisti, a questão se arrasta. Desde novembro de 2009, com a sentença favorável do STF ao reconhecer a Lula o poder de decidir sobre a extradição ou não de Battisti, o nosso Presidente deixou dormir nas gavetas do Palácio a escolha presidencial. Para explicar o que na verdade era inexplicável se aduziram razões diplomáticas, com a consideração devida ao Primeiro Ministro Silvio Berlusconi. Por abstrusas regras inventadas adrede, não se poderia constranger Sua Excelência com decisões eventualmente contrárias ao pleito do governo italiano, que fossem anteriores ou imediatamente posteriores à visita do Cavaliere.
Tantas atenções e tão prolongada inação faziam lembrar atitudes de estados temerosos, diante dos arreganhos de uma potência mundial. Ora, não vivemos mais a diplomacia das canhoneiras nem os abusos desse tipo de imperialismo do século XIX. E nem o Brasil, com o seu tamanho e sua tradição, é país de diplomacia servil e timorata.
Agora, a indecisão de Luiz Inacio Lula da Silva – com que reputara empurrar a responsabilidade de uma tomada de posição – bate, não imprevista, mas com força à porta do gabinete presidencial em sua derradeira jornada de mandato.
Postergando indefinidamente a sua batida de martelo, Lula passou imagem de tibieza e até mesmo de fraqueza. As longas indecisões costumam pesar fortemente, ao enfraquecer a própria posição, a par de açular os ânimos da parte adversária, que interpreta tanta protelação como frágil postura. Os irresolutos incitam a radicalização da contraparte, que não se peja de escalar as próprias ameaças, insuflada pela aparente fraqueza da decisão que se deseja tornar írrita.
Nesses últimos dias, depois de deixar vazar a sua tendência a não extraditar Cesare Battisti, duas coisas se sucedem. As reações desrespeitosas dos ministros italianos do Gabinete Berlusconi, em que pouco falta para taxar o Brasil de republiqueta, eis que aqui se deixa vagarem pelas ruas os assassinos, sem falar das rosnadas represálias. E as reuniões do Presidente Lula – a última com o presidente do STF, Cezare Peluso – em um frenesi de contatos alegadamente informativos, para uma matéria já bastante madura para tal tipo de providência.
Estranhamente, o governo de Lula, que tanta determinação mostrara em firmar acordo nuclear com o Presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad e o Primeiro Ministro turco, Recep Tayyip Erdogan, em manifesta oposição aos Estados Unidos, agora remancheia ad infinitum na tomada de uma decisão de soberania. Eis que Lula, nos últimos dias de seu governo, errou ao vazar a sua intenção quanto a Battisti. Isso foi interpretado como sondagem, de quem não está seguro da respectiva posição. A inação nos dias seguintes, composta com mais contatos, inclusive com órgão que já se manifestaram, só há de contribuir para aumentar a confusão quanto à decisão final, a que Lula, pela sua inesperada timidez, dá múltiplos motivos para a Itália e o seu governo entreverem a possibilidade de obter in extremis um recuo vergonhoso de Nosso Guia.
Esperamos estar errado nas nossas suposições. Lula, no entanto, por seu comportamento, delas constitui a causa principal. Lembre-se, Presidente, que o refúgio a Cesare Battisti é decisão digna de nosso Estado e de nossa Constituição, e que apenas corrobora o asilo que François Mitterrand concedera a Battisti, sob o obsequioso silêncio das autoridades italianas de então que, pelo visto, sabem a quem assombrar.
Fonte: Folha de São Paulo)
sexta-feira, 31 de dezembro de 2010
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Um comentário:
Não tenho conhecimentos políticos suficientes para entender a arrastada indecisão do Presidente Lula. Não tenho dúvidas que Battisti deve permanecer em território brasileiro.Não levo em consideração as insinuações de Berlusconi quanto à seriedade do governo brasileiro porque, para mim, ele não merece respeito político.
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