A imagem é talvez antiquada, mas como nos recorda antigos sacrifícios, entre os quais grandes e solenes oferendas aos deuses, como as hecatombes[1], ela talvez atenda a duas características do fenômeno moderno: o seu caráter quase fortuito e as imprevisíveis consequências de acontecimentos em lugares periféricos e de aparente pouca importância objetiva.
A 28 de junho de 1914, o Arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do Império Austro-Húngaro, na companhia da esposa Sofia, realizava visita a Sarajevo, capital da província da Bósnia-Herzegovina. O descuido e a incompetência de os que organizaram o cortejo de sete carros – o do Arquiduque sem capota ou qualquer outra proteção – só é comparável ao amadorismo dos revolucionários que almejavam abater o que era para eles o símbolo do poder opressor.
O primeiro intento, com o arremesso de uma bomba, produziu estragos, mas não atingiu a viatura principal. Com a irritação do príncipe, a reunião no hospital foi inconclusiva. O próprio motorista de Francisco Ferdinando pensou que a ordem seria retirar-se da cidade, no que demonstrava mais bom senso do que os dignitários. Determinado o aparente equívoco, a viatura retornou ao local marcado pelo destino, onde se achava Gavrilo Principe, cujos dois tiros desencadeariam a chamada Grande Guerra. O primeiro atravessou a lataria e atingiu o abdomen da princesa Sofia. O segundo atingiu o pescoço do Arquiduque Francisco Ferdinando.
Grande simpatia e comiseração cercaram de início as vítimas do magnicídio. No entanto, a reação da Chancelaria austríaca cuidaria de dissipar tal reação natural e imediata. Foi apresentado ultimatum contra a Sérvia, considerada com o núcleo originário da conspiração. Belgrado acedeu a todas as condições impostas por Viena, com uma única exceção, a de que os funcionários austríacos não entrassem em território sérvio no curso de suas investigações.
Por tal motivo, e contando com o apoio de Berlim, Viena declarou guerra à pequena Sérvia em 28 de julho de 1914. Com isso se desencadeou o mecanismo infernal que a diplomacia das grandes potências europeias tinha estabelecido. Não me ocuparei dessa quase alegre entrada no conflito, no jogo das alianças e dos compromissos, incluindo ambiguidades cruéis e irresponsáveis, como se os líderes tratassem das inconsequentes e cavalheirescas guerras do século XVIII . Tal esquema de alianças embrionário e paralelo, algumas secretas que desautorizavam solenes e ostensivos compromissos, contrastava com o progresso econômico e a amplitude do comércio, em época marcada por amplo entendimento, de que a não-exigência de passaportes para as viagens internacionais de ricos e pobres bem representava a atmosfera de cordialidade imperante. Sem o saber, preparavam-se as raízes do desastre futuro, que submeteria a comunidade internacional a milhões de mortos, a grande e generalizado retrocesso no progresso sócio-econômico, e o que é pior, criando as condições malditas para que dali a vinte anos eclodisse outra tragédia, infinitamente superior em sofrimento, injustiça e morte do que a dita Grande Guerra.
O leitor há de perguntar-se por que estou remexendo nesse velho baú, desencavando ossos e farrapos de tempos olvidados.
Na atualidade, no extremo-oriente asiático, a península da Coreia, que antes da última guerra mundial congregara uma só nação, por circunstâncias do legado da conflagração e da decorrente guerra fria, está hoje dividida em dois Estados, a próspera e democrática República da Coreia, de que é capital Seul, e a República Democrática Popular da Coreia, cuja capital é Pyongyang.
Separa esses dois países a área desmilitarizada do paralelo 38, que é consequência do armistício que congelou a sangrenta guerra entre as duas partes de uma só nacionalidade. Ao norte, a ditadura comunista dos Kim, iniciada em 1948, e até hoje imperante, com a crescente presença do exército. E ao sul, a hoje florescente economia que contrasta com a miséria, o isolamento do norte, em que a fome cobra o seu dízimo cruel, agravado pela existência da casta militar e a falência do sistema produtivo.
A primeira guerra transcorreu no início do governo de Kim Il Sung. Sem tratado de paz, as hostilidades permanecem suspensas por um fio. A Coreia do Norte transformou-se em estado pária, mas logrou dominar a tecnologia nuclear e dispõe de mísseis de médio alcance.
Atualmente é presidida por Kim Jong-il, filho do precedente, e alterna tentativas de composição com assomos guerreiros. Talvez por considerações dinásticas, as atenções ora se dirigem para o filho caçula, Kim Jong Um, a quem o pai desejaria colocar no posto de mando da república.
Terá sido nesse contexto de afirmação filial, que Pyongyang escalou na sua reação a exercícios militares em ilha fronteiriça da Coreia do Sul. Como a artilharia da Coreia do Norte matou a dois militares sul-coreanos, o Presidente Lee Myung-bak julgou oportuno elevar o tom da resposta de Seul, tanto nas manobras, quanto nos exercícios civis.
Dado o natural sigilo que cerca a tais desenvolvimentos, se não se conhece o teor dos diálogos entre Barack Obama, protetor da Coreia do Sul, e de Hu Jintao, protetor da Coreia do Norte, não é difícil prever-lhes tanto a existência, quanto a recíproca preocupação em conter os ardores dos respectivos campos.
Talvez a tarefa mais árdua esteja com Hu Jintao, dado o temperamento de Kim Jong-il. A irresponsabilidade de quem paradoxalmente erige a própria fraqueza em força não semelha decerto fenômeno inédito. Se a história não é avara de tais exemplos, tampouco será inoportuno sublinhar que a primeira conflagração mundial foi desencadeada por tal inversão de poderes, com a estranha e tópica predominância dos fracos em momentos determinantes.
Será pensando em tais perigos, que me pergunto se não seria o caso de restringir as manobras e exercícios fronteiriços, a que ora se dedica com patriótico fervor a Coreia do Sul. Regimes mais sensatos e mais equilibrados do que o da República Democrática Popular da Coreia muita vez já entraram nesse jogo de mútua exacerbação militar, com consequências nem sempre das mais auspiciosas para a manutenção da paz.
Dada a circunstância de que Pyongyang, capital de país sem opinião pública e dominado por estrutura militarista, nunca evidenciou equilíbrio que a faça suportar, com equanimidade, as constantes manobras em suas fronteiras, é mais do que tempo de exercer um pouco de controle.
Se levantar lanças e escudos nunca foi presságio de paz, tampouco o será chuçar onça com a vara curta da temeridade. A Paz Mundial agradeceria.
[1] Nada a ver com um dos principais sacrifícios religiosos da Antiguidade, em que se abatiam cem bois. Nos tempos modernos, significa morticínio, carnificina, grande catástrofe.
sexta-feira, 24 de dezembro de 2010
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