A inopinada intervenção em assunto que não lhe diz respeito, pode constituir uma espécie de trailer acerca do comportamento de Luiz Inácio Lula da Silva, após passar a faixa presidencial a sua sucessora Dilma Rousseff.
É sabida a atenção minudente que o Presidente Lula tem dispensado a esta cerimônia. Por assinalar o termo do mandato do antecessor, e o início formal do exercício do presidente seguinte, as vistas do público presente e da Nação tendem naturalmente a voltar-se para o novo titular, enquanto após a ritual passagem do símbolo de Primeiro Mandatário, faculta-se ao ex-presidente, uma vez despojado do sinal remanescente do mandato popular, a quem retorna à vida particular, fazê-lo com a discrição que é própria dessa condição.
Tal não parece ser a ideia que Lula tem a respeito de sua ulterior existência. Além de não se ver como homem comum – se não cabe a José Sarney, tampouco o será para ele - o minudente cuidado que dispensou ao planejamento da cerimônia de primeiro de janeiro de 2011 semelha indicar que mais a encara como o registro de efeméride na progressão pública do estadista Luiz Inacio Lula da Silva, do que a simples solenidade oficial da entrada em funções da Presidente Dilma Rousseff.
O esmero dispensado à transmissão do mando – prevendo, inclusive, a inaudita descida da rampa pela nova presidente, para acompanhar até a viatura o seu predecessor – desvela preocupação da parte de Lula que é tão grande a ponto de não caber na esfera dos deveres protocolares adstritos a chefe de cerimonial.
O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva deve ora sentir-se contrafeito com o crescente esvaziamento das salas do Palácio do Planalto, fenômeno esse corriqueiro e humanamente característico da falta de perspectivas de alguém em fim de mandato. A amargura de alguns pode atribuir a situação à ingratidão dos antigos cortesões e funcionários, quando na verdade faz parte da dinâmica do poder nascente, que vem substituir-se àquele em breve destinado a se extinguir.
Assim, ao manifestar-se sobre medida a ser tomada pela próxima Administração, o Presidente Lula está reagindo não só a respeito de ação da estrita competência de sua sucessora, mas também e sobretudo procura intervir contra sensação de irrelevância, que tende a envolver-lhe nessa contagem regressiva dos dias que lhe restam como Primeiro Mandatário da Nação.
Lula tenta desautorizar Guido Mantega, Ministro da Fazenda, como se os cortes no PAC, anunciados pela nova Administração, devessem igualmente ter a sua anuência. Esse ímpeto de buscar interferir em assuntos que relevam do governo de Dilma Rousseff só pode explicar-se por um entendimento de criador acerca de sua criatura.
Transformar o seu terceiro mandato na presidência de Dilma, se lhe afaga o ego, pela inédita conquista de colocar no planalto, com a chancela da maioria da Nação, a sua pupila, sem qualquer experiência de anterior cargo eletivo, tem a incômoda e implícita faculdade de soprar-lhe ao ouvido que tão grande dádiva há de assegurar-lhe direitos sobre o bom encaminhamento de governo derivado de sua popularidade.
Habituado à preeminência em dois mandatos, e ao predomínio inconteste no PT também nas décadas precedentes, não lhe será fácil seguir, depois do dia primeiro, as ilustres pegadas de Cincinato[1]. A história se nos afigura mais tendente a impingir-nos aqueles que se propõem continuar no mando, ainda que por interpostas pessoas, aos exemplos gratificantes, mas raros, da submissão ao interesse público, no respeito da ordem preestabelecida.
O traço marcante do governo de Dilma Rousseff dependerá, portanto, não só de sua relação com o seu benfeitor, mas também, e sobretudo, com a atitude deste último no que concerne à existência própria e autônoma da Administração que lhe sucede.
( Fonte: O Globo )
[1] Lucius Quinctius Cincinnatus, cônsul em 460 a.C., foi, segundo a tradição, chamado em 458 a.C. quando Roma se achava em grande dificuldade, atacada pelos Aequi. Designado ditador, em quinze dias reuniu um exército,e derrotou os Aequi. Triunfante, renunciou ao cargo e voltou à sua propriedade rural. A história é citada amiúde, como exemplo moral, ilustrativo da austera modéstia da Roma primitiva e de seus líderes (Apud The Oxford Classical Dictionary, Third Edition, 1996 ).
quarta-feira, 8 de dezembro de 2010
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