O último filme de Woody Allen, encenado na Inglaterra, data de 2010. O longo título em inglês, é muito mais sugestivo e abrangente (You will meet a tall, dark stranger), do que a versão em português. Evoca as palavras de videntes e cartomantes que dizem para quem as consulta que irão encontrar uma pessoa alta e morena. Assim, a tradução já limita o alcance e a ambivalência da profecia, além de torná-la algo capenga, por cerceá-la a um tipo de pessoa (homem), quando a vagueza do anúncio se reporta a stranger que, em inglês, pode designar tanto um homem, quanto uma mulher.
E não é à toa que o título da película nos pareça tão comprido e desengonçado. Porque Woody Allen, que o escreveu e dirigiu, quer avisar o espectador que a estória não é assim tão simples. Como um velho yarn, que em inglês significa tanto novelo quanto enredo, o conto a ser narrado tem muitos nós, simbolizados por pessoas que podem ou não serem as metades da laranja que cada um tem o direito de fantasiar.
O carrossel do amor principia a rodar de forma farcesca com Helena (Gemma Jones) que acaba de ser abandonada por Alfie (Anthony Hopkins). Depois de recorrer a bebida e até tentativa desajeitada de suicídio, Helena vai procurar a vidente Cristal Delgiorno (Pauline Collins). Esta surpreende Helena ao apontar o baixo conceito que ela faz de si própria, e cuida de injetar-lhe otimismo e maior segurança.
Logo em seguida, através de Helena, somos apresentados à sua filha Sally (Naomi Watts) e a seu marido Roy (Josh Brolin). As visitas frequentes da sogra irritam a Roy, mas Sally é mais paciente com a solidão da mãe acentuada pela rejeição do marido Alfie.
Sally sabe da visita à cartomante, mas prefere deixar os comentários negativos para a conversa com Roy. Os dois a consideram falsa vidente e embusteira. Por outro lado, Sally não afronta a mãe porque ela paga o aluguel do apartamento. O marido personifica o clássico perdedor. Formado em medicina, opta por tentar a carreira literária. Faz algum sucesso com o primeiro livro, o que não repete nos demais. Agora, escreve e reescreve outro romance, com que espera quebrar a má-sorte. De qualquer forma, não trabalha, pois resolveu abandonar emprego como chofer de limusine ( depois de arrebentar com o carro, por dormir na direção).
Sally arranja colocação em galeria de arte. Sente-se atraída pelo dono, Greg (Antonio Banderas). A pedido dele, cuida de seus contatos e compromissos, a par de trazer-lhe também conhecimento artístico e boas sugestões de quadros.
Aparece Alfie (Anthony Hopkins), que acredita aferrar-se à mocidade através de visitas a academias, exercícios constantes e a corridas pelos parques. Esta sua segunda juventude ele resolve completar com novo casamento. Comunica o propósito à filha Sally, mas omite como realmente encontrara Charmaine (Lucy Punch), na verdade, uma garota de programa. Woody Allen sabe retratar esse tipo de mulher, com traços de suposta ingenuidade, a vulgaridade da profissão, o seu mundinho, pobre em conceitos e diversões, mas ávido no consumismo. Apesar das luzes vermelhas que lhe escancaram o fracasso inexorável, Alfie, fiado na eterna mocidade e no suporte do Viagra, vai em frente.
Entrementes, a crise existencial do genro de Helena, Roy, se acentua. Companheiro seu de poker, Henry Strangler (interpretado por Ewen Bremmer) lhe dá para ler o datiloscrito de seu primeiro romance. Roy fica impressionado com a qualidade do livro, e vaticina para o amigo êxito literário. Por sua vez, Roy continua a esperar pelo juízo de um editor que está lendo o seu novo romance. Durante as frequentes vindas de Helena ao apartamento de filha e genro, a sogra irrita Roy com as previsões negativas de Cristal- em vida futura terá exito como romancista... Refugiado no quarto, Roy entrevê, de sua janela, um vulto de jovem mulher. Para impressioná-la, grita o nome do compositor da música que ela toca. Principia assim o jogo de sedução da mulher na janela.
Alfie casa com Charmaine. Tudo acontece como se em estória de Nelson Rodrigues. Pano verde, mais lojas, as despesas se multiplicam. Alfie se atola em infidelidades e dívidas, ela o arrasta para as baladas, com a sua penca de traições programadas. O cúmulo chega e é duplo: na surra dos punhos de preparador físico, irritado pela interrupção de seus carinhos; e no anúncio da espera de um filho. Perguntada se o filho é dele,ela desabafa que não importa de quem seja o filho. Alfie não cede e diz que fará o exame de DNA.
O fracasso do segundo casamento o leva a trazer Helena para restaurante, onde pensa poder voltar à base inicial, reconvidando a ex-esposa a recompor a relação. Helena, surpresa, se recusa. Diz para o ex-marido que está construindo relacionamento com Jonathan (Roger Ashton Griffiths), livreiro de ocultismo. Tentando tranquilizar Alfie, Helena lhe diz que não se amofine com as agruras presentes. Cristal Delgiorno lhe garantiu que todos nós teremos novas vidas pela frente, quando poderemos ser felizes. Alfie não entende e tudo fica por isso mesmo.
Paralelamente, o casal Sally e Roy se vai dissolvendo. Roy, de sua janela indiscreta, logra roubar do noivo prometido a relação com Dia (Freida Pinto), a moça do prédio ao lado. Após convidá-la para o restaurante da esquina, prossegue na solteirice desenfreada de uma corte, que ela leva a sério, a ponto de apresentá-lo a seu pai, que é crítico conhecido.
Avisado da morte por acidente automobilístico de Henry Strangler, o autor do livro inédito que tanto admirara, Roy acredita vislumbrar a dádiva dos deuses. Invade o apartamento do morto, para apossar-se do datiloscrito do romance. Como ninguém mais sabe da existência do livro, julga reeditar o crime perfeito e decide apropriar-se do talento do falecido amigo.
Por sua vez, Sally se envolve cada vez mais com Greg, embora se esqueça de inteirá-lo do fato. Vai com ele a joalheria para dar-lhe o toque feminino num presente para a mulher (que é bipolar e com a qual Greg vive casamento infeliz). O joalheiro exibe duas jóias caríssimas (um adereço de pérolas e um par de brincos de brilhante). A pedido de Greg, experimenta os brincos. Ela confirma a preferência do patrão, a quem acena mesmo em ficar com o ‘agrado’. Como de hábito, o impérvio Greg sequer reage. Depois vão à opera (Lucia di Lammermoor, de Donizetti), e inspirada talvez pelo espetáculo do amor infeliz, no retorno, Sally em vão se esforça, no seu gênero recatado, em tirar da ambiguidade o meio embriagado Greg. Em outra oportunidade, descobre pendente das orelhas de sua protegida Iris (Anna Friel) o brinco que Greg não lhe quisera dar. Não é necessário muito para que se desenhe a velha estória da amiga a quem o patrão prodiga atenções e promessa de relação que jamais estendera a ela. Um último diálogo entre Sally e Greg põe uma pedra na relação fantasiada pela jovem : ela, lastimosa e rejeitada; ele, incapaz de captar aquilo que não lhe interessa levar avante.
Roy recebe do editor louvores rasgados pelo livro que não escreveu e que apresentara como se dele fosse autor. Impressionada pela sua corte, Dia se mostra disposta a romper o casamento com o noivo. A ruptura é comunicada na véspera da cerimônia, entre os reclamos acrimoniosos do noivo e de sua família. Sobre a felicidade de Roy - e a sua perspectiva de união com a moça sensual a quem sensibilizara a ponto de romper o próprio casamento programado – se projeta brutalmente uma inesperada peripeteia. Henry Strangler na verdade não morreu, está em coma, e a sua recuperação é possível.
No rosto de Roy se delineia o que lhe há de ocorrer se o escritor recobrar a consciência, o que se afigura provável depois da visita com os companheiros de poker à cama do hospital.
Sally se decide afinal a pedir da mãe o empréstimo para que estabeleça a sua galeria. Promete que é só um empréstimo, e que devolverá com juros o dinheiro. Sem embargo, Helena, citando o conselho de Cristal, a surpreende com a recusa. Posta diante do não, Sally se exaspera e perde as estribeiras. Tenta de saída denunciar a vidente como impostora. A fé de Helena na palavra de Cristal é, porém, inabalável. Por isso, Sally arranca a máscara da boa moça, e ofende a mãe, a quem apostrofa de tola e pobre de espírito.
Helena não se abala, e permanece irredutível na negativa. A película, que algum crítico mal-avisado denominou de comédia romântica, se conclui com a união de Helena e de Jonathan. Este último, viúvo muito ligado à esposa, só se resolve a casar com Helena depois de obter a anuência da morta, em sessão espírita. Completa-se o carrossel de tantos desejos e ambições, sendo premiado apenas aquele pequeno núcleo em que dois crentes na reencarnação obtêm pela plácida firmeza de suas disposições a nova oportunidade de retentar nesta terra a felicidade.
Com a mão segura de Woody Allen quase todos os atores comparecem em ótimas representações, com a atriz inglesa Gemma Jones (Helena) à frente. Anthony Hopkins (Alfie) parece um pouco encolhido, e será talvez a idade ou a contingência do papel. Josh Brolin (Roy) nos prodiga outra magnífica interpretação, coadjuvado pela habituée dos filmes de Allen Naomi Watts (Sally). Não encontramos a força e o brilho dos filmes de Almodovar em Antonio Banderas (Greg). Por fim, Roger Ashton Griffiths (Jonathan), ajudado pela carantonha, e Lucy Punch (Charmaine), pela desenvoltura, não destoam.
Um filme, portanto, como quase todos os da lavra de Woody Allen, que, quem não assiste, só tende a sair perdendo.
domingo, 5 de dezembro de 2010
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário