quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

A Democracia na Rússia

A democracia, esta tenra plantinha de que nos fala Octavio Mangabeira[1], está sendo bastante maltratada na Federação Russa. Sua presença na terra dos czares e da revolução bolchevista tem sido sempre fugaz, em breves interregnos de luta contra o poder central. A Duma[2] constituíu no reinado de Nicolau II o símbolo desse combate, que se mostrou incapaz de contra-arrestar a autocracia imperial.
Após o curto parêntese da revolução de fevereiro de 1917, com a derrubada de Alexandre Kerenski em novembro pela revolução bolchevique, a liberdade só principiaria a entremostrar-se nesse gigantesco país com a glasnost e a perestroika de Mikhail Gorbatchev[3].
Com a consequente dissolução da União Soviética – dilacerada pelas forças das nacionalidades, de que a argúcia de Vladimir I. Lenin encarregara o então apparatchik Joseph Stalin de ser o comissário responsável – surgiu em 1991 a Federação Russa, sob a presidência de Boris Ieltsin[4].
Apesar de seu passado comunista, Ieltsin seria um democrata. Com coragem, se batera contra os conjurados do golpe de agosto de 1991, que logrou desmantelar. No entanto, a URSS de Gorbatchev se desmantelaria no dezembro seguinte.
Quando Boris Ieltsin renunciou de surpresa, já no final do segundo mandato, em 1999, legou uma democracia, decerto ainda não consolidada, mas com liberdades básicas respeitadas, como a de imprensa e a partidária. Quiçá o seu principal erro tenha residido na escolha de quem o substituiria na presidência.
Com efeito, no segundo mandato, Ieltsin designou a princípio Vladimir Putin como primeiro ministro e mais para o fim, o apadrinhou como seu sucessor. Por causa de sua abrupta renúncia, Putin o sucedeu, a princípio, em caráter interino. No seguinte ano de 2000, logrou ser eleito presidente.
Ieltsin apreciara os atributos de administrador de Putin. Ele o trouxera da K.G.B., o temido serviço secreto, em que o jovem Vladimir fizera carreira de 1975 a 1990. Tais antecedentes não prenunciariam pendores democráticos da parte do novo presidente.
Putin, cuja impassibilidade e frieza no olhar são lendárias, na sua tarefa de moldar o governo e a sociedade russa de forma mais congenial às próprias ideias, cuidou de fazê-lo de modo gradual.
Aos poucos tratou estabelecer o controle na imprensa e sobretudo nas redes televisivas. Também se empenhou em surda luta contra os grandes empresários da era pós-soviética, com o escopo precípuo de afastá-los da política. Nesse sentido, tornou-se vítima emblemática, há sete anos atrás, Mikhail B. Khodorkovsky. Por afrontar a autoridade de Putin,este fê-lo trancafiar na cadeia, onde até hoje se encontra, por especial gentileza da justiça russa. Khodorkovsky já foi condenado por um juiz, com respeito à nova suposta transgressão. A sentença, contudo, ainda não é conhecida, mas subsistem escassas dúvidas de que esse delito imputado ao magnata não se destine a estender-lhe a prisão para além de 2012, consoante o manifesto desejo do Primeiro Ministro Putin de não ter em liberdade o adversário Khodorkovsky ao ensejo da campanha e provável reeleição naquele ano como Presidente.
Guardadas as aparências democráticas, em estágio bem mais avançado do que o do caudilho Hugo Chávez, a mão de Putin se faz sentir com ubiqua presença em todos os órgãos do Estado, disso não excluídos o Judiciário, a Promotoria e a Polícia. Com maioria nas duas Casas do Parlamento, é preciso muito denodo e audácia para enfrentar Vladimir Putin.
A guerra contra os secessionistas da Tchetchênia, uma pequena república da Federação Russa, continua, inda que de modo larvar, através do recurso ao terrorismo de uma parte dos independentistas. Também as autoridades pro-russas nessa República podem incorrer no assassínio de jornalistas que porventura denunciem os seus atentados contra os direitos humanos. Nesse capítulo, a mártir principal é a jornalista Anna Politkovskaya, assassinada no hall do seu prédio de moradia, na noitinha de sete de outubro de 2006. Até hoje, as tentativas de que haja justiça no caso tem fracassado, seja por falsas indicações, seja pelo desrespeito sistemático ao princípio penal cui prodest [5]nas investigações policiais em torno dos muitos suspeitos quanto ao mando do delito.
Outro episódio da atualidade vem corroborar as apreensões quanto ao enfraquecimento da liberdade na Rússia. Realiza-se agora, igualmente outro julgamento em Moscou, que se relaciona com o assassinato de Natalya K.Estemirova, acontecido há dezesseis meses atrás. Não poucas semelhanças com as vicissitudes da suprareferida Anna Politkovskaya tem o caso de Estemirova.Também renomada defensora dos direitos humanos na república da Tchetchênia, perduram as suspeitas de que haja sido sacrificada pelos seus esforços em fazer respeitar tais direitos.
No banco dos réus, todavia, da justiça moscovita não se acha alguém suspeito de envolvimento no crime que vitimou Natalya Estemirova. Quem lá se encontra é um colega de Estemirova, presidente do Memorial, uma das principais organizações de direitos humanos na Rússia. Oleg P. Orlov está sendo acusado de difamação, por haver ousado apontar como mandante responsável pelo crime Ramzan A. Kadyrov, líder da Tchetchênia.
O processo penal que está sendo movido contra Orlov revela, de uma certa maneira, o que ocorre com quem porventura se atreva a acusar altos funcionários de responsabilidade de algum crime. A imputação se volta contra o denunciante, que corre o risco de, na eventualidade de o juiz julgá-lo culpado, ser condenado à pena de três anos de reclusão.
Infelizmente, não há nada de absurdo em tal prognóstico. A deformação do sistema penal russa é confirmada se intentar-se examinar a questão pelo prisma da vítima. Como sói acontecer, a morte de Estemirova provocou apenas investigação incompleta, sem que os agentes encarregados hajam indiciado quem quer que seja como implicado ou suspeito do assassínio.
Vladimir V. Putin continua, sem embargo, a gozar de altos percentuais de aprovação popular. Por vezes, o seu nível nas pesquisas pode sofrer flexões, como por ocasião dos recentes incêndios florestais, que destruiram muitas casas e ameaçaram diversas cidades, inclusive Moscou. A irritação popular se deve à malversação de fundos para o equipamento dos bombeiros florestais, assim como à manutenção precária de estradas vicinais, que possam servir para um eficaz combate às chamas.
Putin, entretanto, está atento e pronto para intervir, quando acaso distinga algum risco mais forte para abalar o apoio de que goza na opinião pública. Nessa mesma linha, o primeiro ministro se submete a longas sessões com eleitores, respondendo a todo gênero de pergunta. Em tais ocasiões, não deixa de transpirar o seu menoscabo por ‘liberais’. Nessa postura, que de resto não dissimula perante o povo russo, trai a sua formação pela K.G.B.
O homem forte de todas as Rússias tem outras características em que um paralelo pode ser feito com ditadores do passado. Putin deve malhar com pertinácia, eis que lhe apraz, em várias oportunidades, pavonear o seu tórax desnudo e sarado. Como é de baixa estatura, gosta assim de mostrar-se em tais espartanos trajes montado em algum puro sangue.
Falando de peitos nús, caberia perguntar se porventura Vladimir se inspirou em Benito Mussolini[6], que presidiu por mais de vinte anos o Estado Fascista na Itália. Antes de pender de cabeça para baixo na Praça Loreto, ao lado da amante Clara Petacci, o Duce sabia cuidar da própria popularidade – cuja extensão em filmes de época é pelo menos embaraçosa – ao armar jogadas publicitárias, que no gosto de então rendiam muitos aplausos. Uma dessas jogadas foi a chamada ‘battaglia del grano’, em que Mussolini compareceu de torso desnudo, como se fora mais um ajudante nesse ‘combate do trigo’, em que ele buscava demagogicamente inculcar na povoação que a autarquia na produção do trigo era possível, se todos, com o Duce, à frente, se prestassem a colaborar.
Putin, decerto, com a sua catadura séria, não se presta aos gestos teatrais de Mussolini. Mas no terreno em que se crê favorecido, não desmerece dos ganhos potenciais que a máscula exposição do cavaleiro, neste antigo símbolo de poder que oferecem os corcéis, venha a ensejar-lhe perante o povo russo, habituado aos soberanos e senhores da guerra.
Quando do término do segundo mandato, ao invés da tentação continuista – que implicava emenda constitucional - Vladimir Putin preferiu optar por eleger o seu primeiro ministro Dmitry Medvedev. A popularidade de Putin logrou elegê-lo em março de 2008, com 71% dos sufrágios, exibindo, portanto, potencialidade maior de transferência de votos do que a do próprio Lula.
Por um certo tempo, se especulou a propósito de eventual possível peripeteia , com a criatura Medvedev reivindicando a primazia do poder, com relação ao respectivo Primeiro Ministro, no caso Vladimir Putin. Malgrado certas especulações de maior afirmação de Medvedev, o transcurso do tempo tem evidenciado que, ou são vãs, ou fictícias, as aspirações do atual presidente vir a assumir o efetivo controle da situação na Federação Russa.
Nessas condições, duas conclusões se afiguram válidas. Em 2012, se mantido o cenário presente, Dmitry Medvedev cederá de bom grado a vez ao seu mentor Vladimir Putin.
E, no mais extenso país do planeta, a democracia, essa tenra plantinha, continuará a sofrer e a definhar.

( Fonte: International Herald Tribune )

[1] Político baiano (1886-1960), Ministro das Relações Exteriores na presidência de Washington Luís (1926-30), foi deputado federal, Governador do Estado e Senador.
[2] parlamento, em russo.
[3] Mikhail Gorbachev (1931), foi Secretário-Geral do PCUS (1985-1991), e anunciou o desaparecimento formal da URSS em dezembro de 1991.
[4] Antigo membro do PCUS, Ieltsin (1931-2007), foi o primeiro presidente da Federação, exercendo dois mandatos (1991-1999).
[5] latim, a quem aproveita.
[6] Benito Mussolini, ditador fascista (1883-1945)

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