sábado, 2 de julho de 2016

Lembranças de meu Tio Adolpho (XXV)

                       

         Adolpho Bloch achava importante que a sede de Bloch Editores procurasse concentrar igualmente entidades de ordem cultural. Por isso, ele pensou na inclusão de teatro e galeria de arte. Quanto a pinturas e esculturas, o casal desde cedo colecionava quadros de pintores brasileiros.
         Recordo-me que, criança ainda, já vira pendurado na sala do apartamento 501 da rua Antonio Vieira 5, um quadro de Portinari, o homem com a gaiola de passarinho. Mais tarde, Adolpho continuou comprando obras de pintores no Brasil, e nesse sentido, me lembro de vários outros, entre os quais relaciono brasileiros e estrangeiros radicados no Brasil.
         A lista inclui, além do citado Candido Portinari, Lasar Segal, Di Cavalcanti, Guignard, Emeric Mercier, Franz Krajsberg, Tarsila do Amaral, Manabu Mabe, Tanaka, Milton Dacosta, Anita Malfatti, Djanira, Antonio Bandeira e Iberê Camargo.
         Não excluo a possibilidade de que haja omissões nesta lista.
         Este museu da pintura modernista brasileira terá sido projeto que nasceu do amor de Adolpho e Lucy pela nossa pintura. Uma pequena galeria nessa relação de pintores nacionais e outros mais que se encantaram com o Brasil.
          Boa parcela desses quadros estava no edifício Machado de Assis, no amplo apartamento que sucederia àquele do Edifício Chopin como residência do casal.
      Essa última residência do casal Adolpho e Lucy, enquanto permaneceu a sociedade conjugal, era ainda mais espaçosa do que a anterior no Chopin, que é prédio construído como que debruçado sobre a pérgula e a piscina do Copacabana Palace. Esse é o grande encanto do Chopin, cuja construção, menino ainda, acompanhei subindo as escadas da obra, atrás de minha tia Lucy.
        
       Já o Machado de Assis, que defronta o Atlântico, na enseada de Copacabana, antes denominada a Princesinha do Mar, está  naquele enorme quarteirão entre as ruas Santa Clara e  Constante Ramos, é um imóvel maior, e ali estiveram dispostos nas respectivas paredes, como quadros em residência familiar, muitos dos pintores acima relacionados.

        Lucy lá enfrentaria, alguns anos depois da saída de Adolpho do Machado de Assis, grande e para ela inesperada provação. Adolpho - que adquirira muitas das obras de arte ali penduradas - já partira. Pelo seu espaço, o amplíssimo imóvel constituía quase uma galeria. Das telas de Manabu, uma era tão grande que ocupava, qual mural modernista, parede inteira. Dizia-se mesmo que o artista terminara a pintura já na residência dos Bloch, ao ver que ainda existia espaço para completar a sua criação.
       
           Entrementes, a situação da Bloch Editores mudara do vinho para a água. Morrendo na mesa de operação da Beneficência Portuguesa em São Paulo, em 19 de novembro de 1995, Adolpho foi poupado das agruras da falência da empresa.
         
            Uma delas Lucy a suportou com a dignidade e a firmeza que eram traços muito marcados em seu caráter. Como sói acontecer nesses casos, irrompeu no apartamento pelotão com polícias armados e funcionários judiciais, a quem incumbe o não muito ledo encargo de apossar-se, em nome da Lei, dos bens móveis, em particular obras de arte, que lá se achavam.
           
            Como também é praxe, o grupamento adentrou o domicílio em operação de busca e apreensão de obras de arte. Esses bens móveis são coletados com a arma desembainhada, manu militari, e a dona da casa - ou quem lá estiver em seu lugar - está destinada a tratamento quase como se fora virtual receptadora de obras de arte. 

             Na ordem judicial, que os meirinhos cumprem com a ênfase de operação que vem preparada para arrostar a resistência que tais incursões podem por vezes provocar, mas que no caso de Lucy Mendes Bloch, como seria de prever, não se verificou. Mesmo ex abrupto, Lucy enfrenta sozinha, com os poucos servidores que lhe restam, a invasão do próprio domicílio.
         
              Depois, perguntei-lhe porque não me chamara, não fosse para dar-lhe a companhia que se deve a senhora que nada fizera para merecer tal tratamento. Lucy ainda estava sob choque, e creio que só a raiva e o berço lhe deram forças para atravessar aquele ordálio.

              Com a falência, as mesuras e atenções desaparecem nas casas que eventualmente são objeto da operação de busca e apreensão. Pela descrição que me fez, dir-se-ía que era julgada a priori como culpada de receptação de bens que, na verdade, não tinha a ver com a realidade factual. "Perdeu !" é como dizem  criminosos boçais a render um infeliz nessas ruas e artérias do Rio de Janeiro, de que Deus é dito encarregar-se da segurança.

              À minha tia, já grande em anos - tinha na época mais de noventa - não lhe gritaram doestos, mas a trataram com a mesma rudeza e empáfia daquela gente.
                 O mais singular nessas operações em que a dona de casa se vê de repente lançada ao báratro dos infelizes, embora pouco ou nada tenha a ver com aquele braço longo que a toma como se culpada fosse, quiçá para justificar a operações daquele gênero.


                  Lucy tinha têmpera e enfrentou sozinha toda essa externalização de uma violência, que não se dá conta das mínimas condições do respeito devido a nossos semelhantes. Ao contar-me como a trataram e a maneira com que procederam - a despeito de não ter havido resistência alguma - não pude deixar de trazer à mente a magna figura dessa expressão do Iluminismo, isto é, Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria, que escreveu a grande obra "Dos Delitos e das Penas", um dos livros básicos do renascimento jurídico. Como um Ministro da Justiça afirmou mais tarde que prefereria morrer a ser encerrado em uma das prisões do Brasil, não creio que valha a pena aprofundar esta página triste da aplicação das Leis em nossa Terra. Se alguém que é a maior autoridade civil no campo das prisões, as considera como antecâmara da morte, não é de estranhar que tratem a senhoras idosas do modo acima descrito.  

( Fonte: Grande Enciclopédia Delta-Larousse )

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