O que os franceses chamam la campagne não fica assim tão longe de Paris. Mal
desapareça a grande cidade, e eis-nos na campanha. Naquele começo de tarde,
seguindo os que conheciam o caminho, eu levei meus tios Lucy e Adolpho para um
restaurante então bem cotado, e que se chama Le Coq Hardi. Ficava não
tão perto da Cidade-luz, e por isso conservava o seu galhardão de campagnard; mas tampouco dela se
afastava demasiado, para não desencorajar a vinda dos que lhe apreciassem a
cozinha.
Era um fim de semana, e o tempo primaveril
colaborou para aquele encontro que reuniu muitos brasileiros e algumas
francesas. Seguindo alguém que conhecia o caminho - era a primeira vez que
vinha - não tardamos em dar com o restaurante.
Muitos reconheceram Lucy e Adolpho, e
logo nos sentamos em mesa redonda, onde couberam umas oito pessoas.
Em nosso grupo estava o ator Jorge
Dória. A cozinha nos pareceu muito boa, e a qualidade dos pratos costuma
realçar-se ainda mais, se o vinho é francês e corre à vontade pelos alegres
comensais.
À minha volta, via como os humores
respondiam à atenção dos garçons. Sabedor que tinha pela frente estrada
estreita e sinuosa, como eram os bons caminhos vicinais de antanho, tratei de
proteger a minha taça, para que não lamentasse depois alguma surpresa menos
benvinda causada por aquela interesseira profusão.
Esta é a sina dos providentes. A
avinhada alegria tomara quase todas as mesas. Meus tios tinham o riso mais
frouxo, porém o freio de mão da prudência os tinha induzido a ingerir do
bordeaux sem o abandono de outros conhecidos.
A horas tantas, em que as garrafas
escasseavam, cresciam os decibéis do riso em meio aos convivas. Aproximou-se
então do ainda jovem Jorge Dória madame francesa a quem aquele vinho encorpado
parecia ter cortado os liames de esquecido recato. Não demorou muito, que
Dória, com o seu jeitão histriônico, exclamasse:
"ela acaba de me passar um torpedo !"
"ela acaba de me passar um torpedo !"
A senhora, para mim na faixa das
cinquetonas, não se deu por achada. A abordagem falhara, mas ela parecia
lamentar menos o tropeço na conquista, do que o gesto mal-educado em pregar
peça a alguém mais experiente...
E são assim as memórias.
Guardam apenas o essencial: a beleza da campanha, em dia de sol e céu azul; a
alegria daquela gente no restaurante famoso; o bom vinho francês, e as
surpresas que ele pode aprontar.
Mas hoje, onde estará toda
aquela ruidosa gente?
Dos desconhecidos, não há
nada a dizer.
Mas daqueles conhecidos,
estão todos deitados,
dormindo profundamente.
( Fonte: Manuel Bandeira, Vol. 1, Poesia, Profundamente, p.211. )
Um comentário:
Caro Pai, obrigado por compartilhar suas lembranças, eu aprecio muito. Jamais poderia sonhar que vc conhecia o Jorge Dória - e em tão improvável contexto. Pesquisei no Google e o restaurante ainda existe e continua bem cotado. Dê uma olhada para ver se o ambiente ‘e o mesmo. Abraço, Mauro
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