sábado, 18 de junho de 2016

Lembranças de meu Tio Adolpho (XVI)

                  

         O que os franceses chamam la campagne  não fica assim tão longe de Paris. Mal desapareça a grande cidade, e eis-nos na campanha. Naquele começo de tarde, seguindo os que conheciam o caminho, eu levei meus tios Lucy e Adolpho para um restaurante então bem cotado, e que se chama Le Coq Hardi. Ficava não tão perto da Cidade-luz, e por isso conservava o seu galhardão de campagnard; mas tampouco dela se afastava demasiado, para não desencorajar a vinda dos que lhe apreciassem a cozinha.
         Era um fim de semana, e o tempo primaveril colaborou para aquele encontro que reuniu muitos brasileiros e algumas francesas. Seguindo alguém que conhecia o caminho - era a primeira vez que vinha - não tardamos em dar com o restaurante.
          Muitos reconheceram Lucy e Adolpho, e logo nos sentamos em mesa redonda, onde couberam umas oito pessoas.
          Em nosso grupo estava o ator Jorge Dória. A cozinha nos pareceu muito boa, e a qualidade dos pratos costuma realçar-se ainda mais, se o vinho é francês e corre à vontade pelos alegres comensais.
          À minha volta, via como os humores respondiam à atenção dos garçons. Sabedor que tinha pela frente estrada estreita e sinuosa, como eram os bons caminhos vicinais de antanho, tratei de proteger a minha taça, para que não lamentasse depois alguma surpresa menos benvinda causada por aquela interesseira profusão.
           Esta é a sina dos providentes. A avinhada alegria tomara quase todas as mesas. Meus tios tinham o riso mais frouxo, porém o freio de mão da prudência os tinha induzido a ingerir do bordeaux sem o abandono de outros conhecidos.
            A horas tantas, em que as garrafas escasseavam, cresciam os decibéis do riso em meio aos convivas. Aproximou-se então do ainda jovem Jorge Dória madame francesa a quem aquele vinho encorpado parecia ter cortado os liames de esquecido recato. Não demorou muito, que Dória, com o seu jeitão histriônico, exclamasse: 
"ela acaba de me passar um torpedo !"
             A senhora, para mim na faixa das cinquetonas, não se deu por achada. A abordagem falhara, mas ela parecia lamentar menos o tropeço na conquista, do que o gesto mal-educado em pregar peça a alguém mais experiente...
                 E são assim as memórias. Guardam apenas o essencial: a beleza da campanha, em dia de sol e céu azul; a alegria daquela gente no restaurante famoso; o bom vinho francês, e as surpresas que ele pode aprontar.
                  Mas hoje, onde estará toda aquela ruidosa gente?
                  Dos desconhecidos, não há nada a dizer.
                  Mas daqueles conhecidos,
                  estão todos deitados,
                  dormindo profundamente.

( Fonte:  Manuel Bandeira, Vol. 1, Poesia,  Profundamente, p.211. )

  

Um comentário:

Mauro disse...

Caro Pai, obrigado por compartilhar suas lembranças, eu aprecio muito. Jamais poderia sonhar que vc conhecia o Jorge Dória - e em tão improvável contexto. Pesquisei no Google e o restaurante ainda existe e continua bem cotado. Dê uma olhada para ver se o ambiente ‘e o mesmo. Abraço, Mauro