quinta-feira, 16 de junho de 2016

Lembranças de meu Tio Adolpho (XIV)

                     

        Antigamente, o diplomata seguia de navio para o respectivo posto. Tal fazia mais sentido porque o Itamaraty ainda não se tinha transferido para Brasília. A capital fora oficialmente inaugurada em 21 de abril de 1960 por Juscelino Kubitschek, e o presidente, como devera, lá se instalara.
       Quanto aos ministros, como se diz em espanhol, usavam sapatos de chumbo para não saírem do Rio de Janeiro.
       JK pensava em valorizar a Novacap[1], mas não é difícil intuir que nos primeiros tempos, além da poeira, havia, a par dos candangos, muito pouca gente em Brasília. Daí os mecanismos de que o presidente teve de valer-se - como a chamada dobradinha nos salários - para dar um pouco de vida à nova Capital.
        Também o Congresso, cuja transferência para o Planalto era vital para a consolidação de Brasília, teve sua quota de vantagens, que mais tarde pesariam no orçamento e na política.
        Minhas passagens pela capital seriam breves. Recordo-me de uma em que o marechal Tito veio em visita a João Goulart. A atmosfera estava pesada por causa da instrumentalização pela direita da vinda de presidente comunista ao Brasil. O próprio Adhemar de Barros se recusara a recebê-lo em São Paulo, e Jango, no seu encontro com o líder iugoslavo no Palácio do Planalto, não parecia ter muito assunto.
         Ficamos arranchados em hotel próximo do Alvorada. Belo no exterior, mas incômodo no interior. Os elevadores estavam no meio do edifício, e se o hóspede recebesse quarto mais para a extremidade, ele teria que caminhar bastante se desejasse ir ao restaurante, ou tomar táxi para ver um quase deserto marcado por ainda poucas obras de Niemeyer. O comércio era, na prática, inexistente, ou muito mal fornido. As palavras mais ouvidas - está em falta - envolviam, como a poeira ambiente, os visitantes, e a ânsia de quase todos estava na pronta volta ao Rio de Janeiro.
         A Manchete estava na primeira linha da defesa de Brasília. Adolpho e Lucy tinham vindo às festas, e decerto participaram nesta hora de afirmação do Presidente. Adolpho dedicara à nova Capital números especiais, e apesar da maledicência, ele realmente admirava, tanto a obra, quanto a pessoa de JK.  No futuro, quando os ouropéis do poder se desvaneceram, Adolpho não faltou nunca no seu apoio ao fundador de Brasília, no seu apreço continuado, e na sua quase veneração à figura do Presidente.
           Adolpho, o judeu imigrante que chegara aqui menino de treze anos, e que decerto passaria por momentos árduos e difíceis, junto com toda a grei de Joseph Bloch, e que mais tarde se tornara, pelo próprio valor, coragem e vocação empreendedora, o presidente de Bloch Editores, em uma terra na qual por muito tempo não poderia constar como chefe e dirigente de revistas de grande circulação, e que malgrado os previsíveis e também semiocultos obstáculos (sendo os maiores aqueles que não podiam ser ditos) a tudo vencera,  dessa pessoa será tarefa difícil, quase impossível determinar o que lhe representaria ser recebido pelo Presidente, privar de sua companhia, e ter oportunidade de crescer como seu amigo.
             Se a vida é uma escada, dada a circunstância de que o seu relacionamento com Juscelino Kubitschek se fundara em sentimento de mútua admiração e da percepção que se desenvolveria com os anos e - se me permitem dizê-lo  - se afirmaria cada vez mais com a vindoura entrada da adversidade na existência do Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira.
             Pois Adolpho entendia e muito de adversidade. Ele não tinha por hábito choramingar diante do preconceito e da oposição surda e ignóbil, que não costuma mostrar o gesto, mas para aqueles que a sofrem timbra em faze-los  conhecê-la demasiado bem. Adolpho Bloch, por sua história de vida, era um lutador nato. Especialista em vencer o adverso, ele costumava envolvê-lo com um sorriso. Na sua escola existencial, talvez os bedéis lutassem para preponderar, mas Adolpho saberia vencê-los, e muita vez servindo-se do mesmo largo sorriso. Por isso, o relacionamento com JK só poderia firmar-se e estreitar-se quando a adversidade batesse à porta de nosso grande presidente.
              Terá visto em Adolpho não só o amigo certo das horas incertas, ele que nunca hesitara em defendê-lo e enaltecer-lhe a grande obra, e que agora podia mostrar - sem o querer - que a própria amizade, como a terra para Anteu, seria o terreno generoso em que lhe seriam disponibilizadas mais forças, através do apoio incondicional - em momento onde o cercavam com soezes ameaças, IPMs e tristes demonstrações de mau-caratismo - e das atenções com que Adolpho lhe prodigava, em momento triste da história nacional, no qual a direita rancorosa e sempre mofina pensara que a sua hora de vindita afinal chegara. Infelizmente só se poderiam entender as mesquinharias da direita se na Terra da Santa Cruz prevalecesse a filosofia de Confúcio que diz "Por que me detestas tanto, se não te fiz nenhum bem?".
               Como JK não pode sentir-se grato e realizado diante deste brasileiro nascido na Ucrânia que agora o acompanha por toda a parte, e tão só para prestar-lhe o preito da própria gratidão?  Em meio a tanta baixaria, a tal mesquinharia - o que só refletia o caráter das forças então dominantes - como alguém, por grande que seja, não sentirá prazer e orgulho em privar com pessoa que não teme as forças do mal - a despeito de o que já construíu e que lá está, sem outras armas que a própria eficácia e a velha coragem ancestral que transpira no sorriso franco do judeu naturalizado brasileiro, sambista na Praça Onze, gráfico por profissão, capitão de indústrias, defensor da liberdade e realizador por vocação?  




[1] nova Capital

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