Antigamente, o diplomata seguia de navio para o respectivo
posto. Tal fazia mais sentido porque o Itamaraty ainda não se tinha transferido
para Brasília. A capital fora oficialmente inaugurada em 21 de abril de 1960
por Juscelino Kubitschek, e o presidente, como devera, lá se instalara.
Quanto aos ministros, como se diz em
espanhol, usavam sapatos de chumbo para não saírem do Rio de Janeiro.
JK pensava em valorizar a Novacap[1], mas não é difícil
intuir que nos primeiros tempos, além da poeira, havia, a par dos candangos,
muito pouca gente em Brasília. Daí os mecanismos de que o presidente teve de
valer-se - como a chamada dobradinha nos
salários - para dar um pouco de vida à nova Capital.
Também o Congresso, cuja transferência
para o Planalto era vital para a consolidação de Brasília, teve sua quota de
vantagens, que mais tarde pesariam no orçamento e na política.
Minhas passagens pela capital seriam
breves. Recordo-me de uma em que o marechal Tito veio em visita a João Goulart.
A atmosfera estava pesada por causa da instrumentalização pela direita da vinda
de presidente comunista ao Brasil. O próprio Adhemar de Barros se recusara a
recebê-lo em São Paulo, e Jango, no seu encontro com o líder iugoslavo no
Palácio do Planalto, não parecia ter muito assunto.
Ficamos arranchados em hotel próximo do
Alvorada. Belo no exterior, mas incômodo no interior. Os elevadores estavam no
meio do edifício, e se o hóspede recebesse quarto mais para a extremidade, ele
teria que caminhar bastante se desejasse ir ao restaurante, ou tomar táxi para
ver um quase deserto marcado por ainda poucas obras de Niemeyer. O comércio
era, na prática, inexistente, ou muito mal fornido. As palavras mais ouvidas -
está em falta - envolviam, como a poeira ambiente, os visitantes, e a ânsia de
quase todos estava na pronta volta ao Rio de Janeiro.
A Manchete estava na primeira linha da
defesa de Brasília. Adolpho e Lucy tinham vindo às festas, e decerto
participaram nesta hora de afirmação do Presidente. Adolpho dedicara à nova
Capital números especiais, e apesar da maledicência, ele realmente admirava,
tanto a obra, quanto a pessoa de JK. No
futuro, quando os ouropéis do poder se desvaneceram, Adolpho não faltou nunca
no seu apoio ao fundador de Brasília, no seu apreço continuado, e na sua quase
veneração à figura do Presidente.
Adolpho, o judeu imigrante que
chegara aqui menino de treze anos, e que decerto passaria por momentos árduos e
difíceis, junto com toda a grei de Joseph Bloch, e que mais tarde se tornara,
pelo próprio valor, coragem e vocação empreendedora, o presidente de Bloch
Editores, em uma terra na qual por muito tempo não poderia constar como chefe e
dirigente de revistas de grande circulação, e que malgrado os previsíveis e
também semiocultos obstáculos (sendo os maiores aqueles que não podiam ser
ditos) a tudo vencera, dessa pessoa será
tarefa difícil, quase impossível determinar o que lhe representaria ser
recebido pelo Presidente, privar de sua companhia, e ter oportunidade de
crescer como seu amigo.
Se a vida é uma escada, dada a
circunstância de que o seu relacionamento com Juscelino Kubitschek se fundara
em sentimento de mútua admiração e da percepção que se desenvolveria com os
anos e - se me permitem dizê-lo - se
afirmaria cada vez mais com a vindoura entrada da adversidade na existência do
Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira.
Pois Adolpho entendia e muito de
adversidade. Ele não tinha por hábito choramingar diante do preconceito e da
oposição surda e ignóbil, que não costuma mostrar o gesto, mas para aqueles que
a sofrem timbra em faze-los conhecê-la
demasiado bem. Adolpho Bloch, por sua história de vida, era um lutador nato.
Especialista em vencer o adverso, ele costumava envolvê-lo com um sorriso. Na
sua escola existencial, talvez os bedéis lutassem para preponderar, mas Adolpho
saberia vencê-los, e muita vez servindo-se do mesmo largo sorriso. Por isso, o
relacionamento com JK só poderia firmar-se e estreitar-se quando a adversidade
batesse à porta de nosso grande presidente.
Terá visto em Adolpho não só o
amigo certo das horas incertas, ele que nunca hesitara em defendê-lo e
enaltecer-lhe a grande obra, e que agora podia mostrar - sem o querer - que a
própria amizade, como a terra para Anteu, seria o terreno generoso em que lhe seriam
disponibilizadas mais forças, através do apoio incondicional - em momento onde
o cercavam com soezes ameaças, IPMs e tristes demonstrações de mau-caratismo -
e das atenções com que Adolpho lhe prodigava, em momento triste da história
nacional, no qual a direita rancorosa e sempre mofina pensara que a sua hora de
vindita afinal chegara. Infelizmente só se poderiam entender as mesquinharias
da direita se na Terra da Santa Cruz prevalecesse a filosofia de Confúcio que
diz "Por que me detestas tanto, se não te fiz nenhum bem?".
Como JK não pode sentir-se grato
e realizado diante deste brasileiro nascido na Ucrânia que agora o acompanha por
toda a parte, e tão só para prestar-lhe o preito da própria gratidão? Em meio a tanta baixaria, a tal mesquinharia
- o que só refletia o caráter das forças então dominantes - como alguém, por
grande que seja, não sentirá prazer e orgulho em privar com pessoa que não teme
as forças do mal - a despeito de o que já construíu e que lá está, sem outras armas
que a própria eficácia e a velha coragem ancestral que transpira no sorriso
franco do judeu naturalizado brasileiro, sambista na Praça Onze, gráfico por
profissão, capitão de indústrias, defensor da liberdade e realizador por
vocação?
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