Para Adolpho, o palavrão quase constituía
uma espécie de pontuação na própria linguagem. Ao lado do evanescente sotaque da língua russa
(o menino Adolpho chegara ao Brasil com treze anos de idade, junto com toda
família de seu pai, o gráfico Joseph Bloch) e de algumas expressões que haviam
sobrevivido à travessia, virando frases em português (não é verdade isto?), a ambulante prosódia de meu tio - hoje me dou
conta - poderia ser objeto dos cuidados de um linguista, o que quiçá ajudaria ao
eventual biógrafo...
Dessarte, repontavam os palavrões, que
com ele quase funcionavam qual espécie de conexão para o discurso, como se a
respectiva inserção lhe permitisse ligar uma idéia a outra. Se agitado
estivesse, tal se verificaria mais, pois a emoção pode atropelar o pensamento
e, por conseguinte, a necessidade de - na forma do possível - lograr
escandi-lo.
Como a maior parte dos personagens
deste episódio já se foram, posso permitir-me certas liberdades. A época do
episódio já vai encontrar nosso herói mais avançado em anos, mas ainda vigoroso.
Não mais estamos nas estreituras dos
tempos da Antonio Vieira, ou até mesmo da progressão no apartamento do
Chopin, onde vi grandes figuras da
República serem recebidas com a simpatia de Adolpho e Lucy, mas também o
respaldo da revista que sucedera ao Cruzeiro como o semanário de maior
circulação nacional.
O casal Bloch adquirira um senhor
espaço na Granja Comary, e aí construira em madeira de lei - a mor parte em
Gonçalo Alves - mansão que, nas vizinhanças de Teresópolis e ao sopé do Dedo de
Deus, estivesse preparada para receber - e se fosse o caso abrigar - os
comensais e convidados que desejassem, ou passar fim de semana, ou mesmo um
dia, cercados pelo gosto de Lucy, e as atenções do anfitrião Adolpho, que já
tinha a cuidar de muitas revistas, com o carro-chefe da Manchete à frente,
seguido por diversas outras como Fatos e
Fotos, Enciclopédia Bloch, Jóia,
a breve Manchete Esportiva
(como explicaria Adolpho, como ter revista que só vende quando o Flamengo
ganha, e fica nas bancas, quando ele perde?), e um vastíssimo (em geral
rentável) etcetera.
Pois, para não alongar em demasia
esta, num certo fim de semana, depois de negociação prolongada, Adolpho nos
convidou para a mansão de Teresópolis, quando se daria um almoço para a família
Ricci [1].
Bloch e talvez alguém da revista pensara em convidar o velho Ricci porque ele
tinha duas belíssimas filhas. Esse tipo de ocasião nada tinha de inusitado,
sendo bastante usual que Adolpho e Lucy tivessem à mesa jovens cuja formosura e
elegância poderiam embelezar as páginas de Manchete.
A despeito da resistência inicial do
chefe da família, tudo parecia haver entrado nos eixos, com data e horário do
almoço dominical acordados, quando alguém da grei Ricci cochichou à turma da
Manchete que tudo bem, o velho comparece com as filhas, mas é bom que não se
esqueçam que ele não admite palavrões.
Imaginem-se os rodeios e os temores de
quem teria de transmitir a mensagem ao dono da casa (aquele que achava estar
fazendo uma piada, quando dizia, ao fim da refeição, para o mordomo: l'addition,
s'il vous plaît![2])
Como alguém que atravessara as estepes do Império
Russo para dar no Brasil, há de compreender-se que Adolpho via sempre com a
ironia do self-made man[3],
todos os manjares, bebidas e demais frescuras aí servidas. Daí a piada - que acreditava
muito apropriada - de pedir a conta da lauta refeição por ele bancada... É bem verdade que ele pensava pôr todos à
vontade com o sorriso irônico com que vestia a sua frase ritual.
No entanto, para aquele almoço do
Velho Ricci com a mulher e as filhas, depois de muitas hesitações, a turma do
apoio teve de transmitir a Adolpho o que seria para ele a parte intragável de
tornar-se anfitrião de tal evento.
Não sei quem passou o guizo no
gato, mas pela cara de meu tio logo vi que a mensagem fora devidamente
transmitida...
Havia, portanto, compreensível expectativa
e até certa ansiedade como a coisa iria se desenvolver. A dúvida inicial,
bastante fundada, era se Adolpho aguentaria a provação. Caso negativo, qual
seria a reação do principal convidado...
Foi, por conseguinte, uma surpresa
para os partícipes que o tio lograsse se conter. Uma que outra vez, sentiu-se
que a coisa estava por um triz, mas Adolpho fez das tripas coração, e não disse
aquelas palavras. As moças, na verdade,
eram bonitas, belas até, e não só pela mocidade. Mas será que Adolpho
aguentaria esse transe?
E não é que ao fim e ao cabo,
Adolpho Bloch passou com todas as cores a prova do velho Ricci?
Disse, é verdade, uns bons e
sonoros palavrões quando o velho, a mãe e as filhas já tinham partido.
Mas ao perscrutá-lo, intrigado
que estava, me dei conta de que ele, concluído o teste, ficara satisfeito e até um pouco
orgulhoso de ter vencido o desafio...
E então entendi. A condição fora,
decerto, salgada, mas no final de tudo ele lograra a façanha de tê-las à mesa. De
certa maneira, mais uma vez vencera...
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