terça-feira, 28 de junho de 2016

Lembranças de meu Tio Adolpho (XXI)

                           

         Adolpho separou-se de minha tia Lucy, sua esposa por quarenta anos, na década de 1990. A data é imprecisa, porque ele simplesmente saíu de casa, e passou a viver com Ana Bentes, com quem já mantinha relacionamento extraconjugal.
         Desde um imprecisado tempo, o casamento com Lucy tinha problemas. O casal começara o namoro em encontro na rua. Ambos formavam um belo par, segundo testemunhas contemporâneas. Lucy, além da personalidade forte, tinha presença, e o rapaz a quem conhecera em logradouro público, era bem parecido. Não lhe faltou a necessária ousadia para aproximar-se na rua - esse antigo cadinho de tantas uniões - da formosa e elegante moça.  Estava escrito, porque naqueles tempos essa dupla só poderia formar-se em tal cenário. Dessarte, a quem a via pública fizera as apresentações, a jovem dupla formalizou no rito civil o casamento, enquanto o matrimônio religioso só pôde ser sagrado na sacristia de igreja católica.
          O jovem casal se unira por amor, e intui-se que a união a princípio não foi fácil, como seria qualquer matrimônio entre um judeu e uma católica, muito antes do Concílio Vaticano II, a partir do qual a Igreja de Papa João XXIII começou a normalizar o difícil relacionamento com os seus irmãos mais velhos.
          Adolpho costumava às vezes apodar Lucy de Ruy Barbosa, com o que supostamente criticava a postura da esposa como que armada de muitas certezas e categóricas assertivas.
          Mas os dois se completaram bem, como é prova a respectiva interação nesses longos anos. Infelizmente, não quiseram ter descendência, mas não está claro quem  seria o responsável determinante dessa decisão.
          Adolpho dizia que Lucy era uma espécie de seu cartão de visitas. Em época preconceituosa, semelhava importante para o casal que agissem conjuntamente nas grandes decisões, como o foi o pedido de Adolpho para que Lucy negociasse com Figueiredo e Golbery a formalização de um canal televisivo para a Manchete.  E assim foi feito.
          Se a família não soube da data exata da ruptura da união de oito lustros, nunca haveria dúvida sobre quem tomara a iniciativa. Foi violenta a negação de Lucy, pois ela simplesmente continuou a agir no edifício Machado de Assis, no apartamento da avenida Atlântica como se a ausência de Adolpho fosse simplesmente acidental. Nesse quadro, minha tia se comportava como se o respectivo cônjuge estivesse por irromper a qualquer momento, vindo do trabalho no Russell, na ampla sala com rasgada vista para a Avenida Atlântica.  
          Dessarte, ela o menciona amiúde - e muita vez com a insinuação de que esteja por aparecer - o que transmite para parte dos eventuais comensais  atmosfera de crescente, quase agressiva irrealidade.
           Além de outros sintomas, as amiudadas, insistentes referências ao cônjuge podiam transmitir a muitos a impressão de que ele estivesse mesmo por chegar a qualquer momento, mas não aos próximos, pois apenas vincava mais o fosso daquela  penosa separação.

           Dado o ritual no Machado de Assis, aquelas cenas me pareciam algo reminiscentes ao que deveria ocorrer com testas coroadas em séculos pretéritos, em que a rainha repudiada pelo soberano mantinha através de seu círculo e  respectivo cerimonial as sombras de uma ilusão, que lhe seria talvez mais penosa se lançada aos feros mastins da impiedosa verdade.

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