Adolpho separou-se de minha tia Lucy, sua esposa por
quarenta anos, na década de 1990. A data é imprecisa, porque ele simplesmente saíu
de casa, e passou a viver com Ana Bentes, com quem já mantinha relacionamento
extraconjugal.
Desde um imprecisado tempo, o casamento com
Lucy tinha problemas. O casal começara o namoro em encontro na rua. Ambos
formavam um belo par, segundo testemunhas contemporâneas. Lucy, além da
personalidade forte, tinha presença, e o rapaz a quem conhecera em logradouro
público, era bem parecido. Não lhe faltou a necessária ousadia para
aproximar-se na rua - esse antigo cadinho de tantas uniões - da formosa e
elegante moça. Estava escrito, porque
naqueles tempos essa dupla só poderia formar-se em tal cenário. Dessarte, a
quem a via pública fizera as apresentações, a jovem dupla formalizou no rito
civil o casamento, enquanto o matrimônio religioso só pôde ser sagrado na
sacristia de igreja católica.
O jovem casal se unira por amor, e intui-se
que a união a princípio não foi fácil, como seria qualquer matrimônio entre um
judeu e uma católica, muito antes do Concílio Vaticano II, a partir do qual a
Igreja de Papa João XXIII começou a normalizar o difícil relacionamento com os
seus irmãos mais velhos.
Adolpho costumava às vezes apodar
Lucy de Ruy Barbosa, com o que supostamente
criticava a postura da esposa como que armada de muitas certezas e categóricas assertivas.
Mas os dois se completaram bem, como
é prova a respectiva interação nesses longos anos. Infelizmente, não quiseram
ter descendência, mas não está claro quem
seria o responsável determinante dessa decisão.
Adolpho dizia que Lucy era uma
espécie de seu cartão de visitas. Em época preconceituosa, semelhava importante
para o casal que agissem conjuntamente nas grandes decisões, como o foi o
pedido de Adolpho para que Lucy negociasse com Figueiredo e Golbery a
formalização de um canal televisivo para a Manchete. E assim foi feito.
Se a família não soube da data exata
da ruptura da união de oito lustros, nunca haveria dúvida sobre quem tomara a
iniciativa. Foi violenta a negação de Lucy, pois ela simplesmente continuou a
agir no edifício Machado de Assis, no apartamento da avenida Atlântica como se
a ausência de Adolpho fosse simplesmente acidental. Nesse quadro, minha tia se
comportava como se o respectivo cônjuge estivesse por irromper a qualquer
momento, vindo do trabalho no Russell, na ampla sala com rasgada vista para a
Avenida Atlântica.
Dessarte, ela o menciona amiúde - e
muita vez com a insinuação de que esteja por aparecer - o que transmite para parte
dos eventuais comensais atmosfera de crescente,
quase agressiva irrealidade.
Além de outros sintomas, as
amiudadas, insistentes referências ao cônjuge podiam transmitir a muitos a
impressão de que ele estivesse mesmo por chegar a qualquer momento, mas não aos
próximos, pois apenas vincava mais o fosso daquela penosa separação.
Dado o ritual no Machado de Assis, aquelas
cenas me pareciam algo reminiscentes ao que deveria ocorrer com testas coroadas
em séculos pretéritos, em que a rainha repudiada pelo soberano mantinha através
de seu círculo e respectivo cerimonial
as sombras de uma ilusão, que lhe seria talvez mais penosa se lançada aos feros
mastins da impiedosa verdade.
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