Tio Adolpho, se
fora presença episódica na vida do menino Mauro, depois crescera nas minhas idas, acompanhando
a família, à Frei Caneca - que abrange duas fases distintas - e mais tarde em
passeios de lancha, na baía de
Guanabara.
O tecido da lembrança é decerto
caprichoso, com lacunas que no caso são mais decorrência das sinuosas, solertes
e subreptícias ciladas do deus Cronos, que brinca, entre mofino e malfazejo,
com a fugaz e frágil memória dos humanos.
Eu, menino órfão - de quem o destino
levara tão cedo a presença do pai e a quem a psicanálise diria depois não só dá
segurança, mas certeza e solidez, além do vulto grande presente na casa em que
vives, no meio que frequentas, nas atenções que vicariamente te são prodigadas
- e de cujo peso e indubitável relevância só saberias serodiamente pela
assertiva de voz prematuramente cortada do teu convívio, de quanto se depende
da solitária figura paterna, por ser a única que cabalmente te
confirma
na sorte, na ambição e na dúvida, que é, sobretudo, por importuna que te
irrompa, companheira inquietante, molesta e tormentosa.
Com ela não há lidar, se o destino
indiferente, sem qualquer sombra de pré-aviso, te arranca da tua tenra,
tentativa consciência in-fieri, não
só a figura - que para a
criança-infante é mais do que presença protetora e evolvente, mas também mítico,
instintivo repositório de carinho, apoio e fortaleza, como o sentira no átimo
em que se perdera na multidão anônima da rua central e atravessara por breves,
lancinantes segundos de funda angústia e súbito abandono, a temporária perda da
mão rija e carinhosa que lhe viria não tão rápido quanto desejara, no abraço
forte do pai que para seu alívio tornara a ser presente, de pronto apagando
lágrimas de inominada ansiedade - que a criança que deixou de ser de colo sente
mas não sabe exprimir.
Entrei sozinho na casa avoenga da
Fernandes Vieira, 93, palco de tantos jogos, travessuras e brincadeiras, e de
incontáveis encontros com os tios e a minha prima Cris, que me seguia em anos,
em mais desenvoltura, e igual companheirismo.
Vinha de longe - e o que sói
nessas horas acontecer que o futuro não explica - iria prefigurar-se diante da
criança indecisa que sem saber ao certo já sentia, e que avançava pelo chão
pedregoso da alameda do jardim do avô Romualdo estranhamente sozinha, sem adulto
a acompanhá-la. Mas, lesto subiu os poucos
pétreos degraus da entrada externa.
Pelo acúmulo de pessoas -
e não discerniu ninguém que conhecesse - adentrou o hall interno, empurrando a pesada porta da mansão.
Em meio à gente estranha que ali se reunira,
separado da sala de entrada por painel divisório de madeira escura e trabalhada,
sem que soubesse por que o seu olhar se voltara à esquerda, por trás da sala de
visitas - que, consoante o costume antigo, tão raro se abria para pessoas de
cerimônia e a tantos mais que nunca antes
vira.
Sem que se desse conta, o menino de seis anos
afasta o olhar da aglomeração ao redor,
e o afunda, sem saber bem porquê, no estranhíssimo espetáculo, que se aprontara na
residência de vô Romualdo e vó Lucinda, naquela sala toda envidraçada, dita de
visitas.
Os olhos de crianças
pairam ignaros no que lá existe. Sobre estrado de madeira, um caixão cerrado. Mais do que o féretro, o
espanta a quantidade de flores que sobre ele se estendem. O branco dos lírios e
o verde da amontoada folhagem mal deixam entrever o esquife mortuário.
Deveras, excluída a
imagem que o agride de forma que não entende a princípio, mas já com a
suspeita, que confirma os gritos de sua mãe no avião, com as passagens
arranjadas quase por milagre naqueles anos de guerra na Europa, e tendo de
aguentar os vôos lotados e lentos, malgrado os quatro barulhentos motores à
hélice.
Até então não sabia -
ou relutava em saber - da razão dos gritos de mamãe, que, nas presas do
desespero, queria sem querer que o tal avião caísse.
A partir do instante,
em que me deparo com aquela estranha armação, principio a intuir de o que se trata. Em
quarto anexo está minha mãe, entregue ao sofrimento da brutal e final separação
de um casal que com meus olhos infantis sempre vira feliz, risonho e brincalhão
.
Era junho de 1944. Depois, nos
perguntaríamos se não teria sido melhor que o tenente do CPOR José Raphael de Azeredo houvesse
partido com a FEB para a Europa. Até o vira de longe, na casa paterna, com o
uniforme de tenente.
Seria apenas a visão
de um pai que me faltaria em breve para sempre.
( Fonte:
Bernardim Ribeiro )
Um comentário:
Olá Pai, que ótima ideia iniciar uma série com suas lembranças do Adolpho. Pelo pouco que conheci, era uma figura bem folclórica. Contudo, o principal é que são vivências que marcaram a sua vida, mas que eu não conhecia, já que as conversas do dia a dia raramente as veem surgir. Seguirei a série com muito interesse, como as anteriores. Abraço, Mauro
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