segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Não esqueçam a Ucrânia!

                                 
 

       George Soros, o conhecido financista, que estabeleceu o nome e boa parte da fortuna, com a sua vitoriosa aposta contra a então paridade da libra esterlina, tem escrito regularmente na New York Review of Books sobre a situação da Ucrânia.

       Como não exatamente chovam as informações sobre esse relativamente grande país, que, enquanto concerne à Rússia, se acha infelizmente incluído na faixa do estrangeiro próximo, acolho com muito prazer os dados que transmite em seu último artigo na New York Review esse bom amigo da média potência atacada por Putin desde a queda em fevereiro de 2014, em virtude da revolta da praça Maidan, do Presidente Viktor Yanukovich.

        O povo ucraniano, e sobretudo o de Kiev, demonstrara pela rebelião que denominei de oitocentesca, pelas características da revolta que lembra as revoluções parisienses que se valiam do dédalo de estreitas ruas da Paris ainda quase-medieval para tentar fazer valer as próprias reivindicações, a sua opção por um porvir de desenvolvimento com liberdade - prometido pelo acordo comercial proposto pela União Europeia, ao invés da adesão ao medíocre futuro de união aduaneira com Moscou.

        Esse grito da praça Maidan - pelo qual o povo ucraniano e notadamente o mais ligado à sua parte ocidental, levaria à queda e fuga dessa criatura de Moscou, de que as entranhas do Palácio presidencial, abandonado às pressas, mostrariam a corrupção - teria outra consequência.

        Arrancando a própria máscara, Vladimir Putin mandaria acionar, como se se acreditasse viver nos domínios da antiga União Soviética, a conjunta e nefária operação de anexação da península da Crimeia - que seria invadida dois meses depois por tropa descaracterizada, tudo para às carreiras ultimar um referendo de fancaria -  e o início de operação militar contra províncias orientais da Ucrânia. Valendo-se da porosidade das fronteiras, gospodin Putin lançou uma guerra solerte e envergonhada, em que segundo a prática de seus modelos - Mussolini e Hitler - o hinterland da Ucrânia oriental era invadido e desestabilizado.

        Esta situação tem evoluído, e de forma que poderia ser altamente positiva tanto para a Ucrânia, quanto para a União Europeia.

        Nesse quadro, semelha oportuno resumir como George Soros em seu artigo vê a situação corrente. A União Europeia (UE) enfrenta cinco crises no momento atual: quatro que o articulista considera internas: a do Euro, a da Grécia, as migrações ocasionadas pela situação na Síria, e o referendo inglês sobre a sua permanência na U.E.; e uma externa, a agressão russa contra a Ucrânia.

        Antes de adentrar o exame por Soros da crise com a Ucrânia, seria oportuna breve análise da crise causada pela ação unilateral de David Cameron ao provocar um inútil e desnecessário referendo inglês sobre a respectiva permanência na União Européia. Político medíocre e sem maior visão politico-estratégica, criara da solo (por si só) um problema para a velha Álbion que gente mais preparada e com melhor visão histórica (Cf. Edward Heath) teria controlado com facilidade. A insularidade inglesa pode ser idiossincrasia de grupo de saudosistas do  Império, when Britannia ruled the waves.[1] Bastará o trauma de querer reviver situação pretérita, que não mais existe, e negar uma interdependência que a realidade se comprazerá em confirmar mesmo que seja demasiado tarde, para pôr a nu a insânia e/ou estupidez de curvar-se a velhos e estultos preconceitos, para mostrar quão cruéis e desmoralizantes podem ser crises fabricadas pela própria mediocridade.

        O raciocínio de Soros é simples, mas de certa forma cogente. Todas as cinco crises não podem ser resolvidas ao mesmo tempo. Sem negligenciá-las, há necessidade de dar tratamento preferencial a algumas. No entender do articulista, a Ucrânia deveria fruir da máxima prioridade.  Assim, as crises internas tendem a dividir a E.U.  entre nações devedoras e credoras; entre Reino Unido e o Continente; e nações de 'chegada' e 'partida'.

        Em contraste com tais situações, como a agressão russa contra a Ucrânia - o que configura uma ameaça externa - tal deveria unir a União Europeia.

         A nova Ucrânia se inspirou no espírito da revolução Maidan culminada em fevereiro de 2014, e busca reformar de forma radical o país.  Note-se que a velha Ucrânia  tinha muitas coisas em comum com a velha Grécia: uma economia dominada por oligarcas e uma classe política que se valia de sua posição para auferir ganhos particulares, ao invés de trabalhar para o povo.

         Se se tratar a Ucrânia como Grécia de segunda classe, que nem é membro da União Européia, a Europa (Bruxelas) corre o perigo de fazer com que a nova Ucrânia torne a ser a velha Ucrânia.

        A comparação da nova Ucrânia com a Grécia deve ser levada até certo ponto, no meu entender, mas tem pertinência no sentido de que seria um erro fatal de Bruxelas, se se levar em conta que a nova Ucrânia é um dos dados  e vantagens mais valiosos que a Europa possa ter, tanto pelo seu aporte para a resistência contra a agressão russa, quanto por recapturar o espírito de solidariedade que caracterizava a União Européia nos seus primeiros tempos.

         Nesse contexto, G. Soros se considera em situação favorável para  desenvolver esse argumento, tanto pela sua contribuição para a nova Ucrânia através de sua fundação aí estabelecida,  assim como pelo seu envolvimento nas questões relativas a tal país.

          Na sua nova estratégia para a Ucrânia, já delineada em número anterior da New York Review, Soros sublinhou que as sanções contra a Rússia são necessárias, mas não bastam por si mesmas. 

          Qual é a estratégia de Vladimir Putin para defender-se - e de forma bem-sucedida - contra as sanções do Ocidente?  Na chã argumentação de Putin, todas as dificuldades econômicas e políticas confrontadas pela Rússia são devidas à hostilidade do Ocidente, que desejaria negar à Federação Russa o lugar que é dela no mundo.

          Nessa argumentação simplista e desonesta, a Rússia seria a vítima da agressão ocidental. Ao valer-se do patriotismo dos cidadãos russos, Putin lhes pede que aguentem as dificuldades - que incluem instabilidade financeira e carências (no abastecimento) - que as sanções ocidentais ocasionam.

              No entendimento de Soros, a melhor maneira de pôr a descoberto a falha proposital na argumentação do Presidente russo, estaria em estabelecer melhor equilíbrio entre as sanções impostas contra a Federação Russa e o apoio para a Ucrânia.

              A 'estratégia vencedora' de Soros preconiza ajuda financeira efetiva para a Ucrânia, que combinaria apoio orçamentário de larga escala com um seguro custeável de risco político, junto com outros incentivos para o capital privado. Se juntarmos tais medidas com as reformas radicais, tanto políticas, quanto econômicas que a nova Ucrânia anseia por introduzir, tais medidas tornariam a Ucrânia em país muito atraente em termos de investimento.

             No entender de G. Soros, a chave das reformas econômicas na Ucrânia está na reestruturação do monopólio estatal do gás, Naftogaz, o que levaria a nele introduzir preços determinados pelo mercado (ao invés dos atuais artificiais baixos preços), com a introdução de subsídios diretos para o fornecimento dos lares de classe necessitadas.

            Quanto às reformas políticas elas focalizam o estabelecimento de um judiciário honesto, independente e competente, assim como  mídia com iguais características, que combateria a corrupção. Por outro lado, a reforma do funcionalismo público que serviria à população, ao invés de explorá-la.

            No entender de Soros, essas amplas reformas igualmente motivariam a muita gente na Rússia, que exigiriam  reformas similares. Esse efeito-demonstração seria o que Vladimir Putin temeria mais. No entender de Soros, esta seria a razão pela qual o autocrata russo tanto teria tentado com vistas a desestabilizar a nova Ucrânia.

            Nesse contexto, me parece haver excessiva credulidade do articulista quanto à capacidade do efeito-demonstração da nova Ucrânia (que em grande parte ainda é um projeto e não realidade em amedrontar e/ou desestabilizar gospodin Vladimir Putin, com seus nervos de aço, e notória capacidade de instrumentalizar o cidadão russo através da mídia que ele, Putin, controla em grande parte.

             No entendimento de Soros, se os aliados da Ucrânia combinassem as sanções contra a Rússia, com assistência eficaz para a nova Ucrânia, nenhuma propaganda poderia obscurecer o fato de que os problemas econômicos e políticos da Federação Russa são causados pelas políticas de Vladimir Putin. O autor reconhece que em aberta violação do Acordo de Minsk II, de onze de fevereiro de 2015, Putin lograria impedir a Ucrânia de ter êxito, através de invasão militar em larga escala. Mas isto, no seu entender, seria uma derrota política para Putin, eis que revelaria a falsidade de sua interpretação do conflito com a Ucrânia.

              Adiante Soros reconhece a fraqueza da posição ocidental. Dessarte, o Presidente Putin disporia de - nas palavras do próprio George Soros - vantagem tática temporária sobre a Ucrânia, "porque ele está disposto a arriscar um conflito de larga escala e mesmo a guerra nuclear (sic), enquanto os aliados da Ucrânia estão determinados a evitar um conflito militar direto com a Rússia."

               Não creio que Putin seja suficientemente demencial para  incorrer no risco de guerra nuclear. Putin tem fruído de grande vantagem tática, não porque esteja disposto a valer-se de armas nucleares, mas sim pelo simples fato de que o Ocidente não mostra sequer a firmeza de enfrentar a ameaça de guerra convencional. Todos os ganhos de V.Putin nos dois Acordos de Minsk se devem a essa óbvia fraqueza do Ocidente, que o leva a recuar diante da postura marcial de Putin. É jogo de criança e um claro enigma.

                 Há dois grandes obstáculos para o governo Poroshenko na sua relação com Putin. O Acordo de Minsk II de fevereiro de 2015 se seguiu a derrota militar importante infligida à Ucrânia pelos separatistas (com forte apoio russo). A precaríssima situação ucraniana a forçou a negociar em situação bastante desfavorável e gospodin Putin não perderia a oportunidade de tornar o cessar-fogo bastante 'caro' para Kiev, visto que foi negociado sob coação (under duress)

                 Em consequência o 'Acordo' Minsk II garantiu um status especial para os enclaves separatistas na região da Bacia do Don (Ucrânia oriental).

                 Esse 'Acordo Minsk II' foi assinado pelos Presidentes Putin, Poroshenko, François Hollande e a Chanceler Angela Merkel.  Segundo Soros, o acordo fez cair os dois últimos em uma armadilha. A dupla franco-germânica queria que o acordo fosse cumprido.  Se ele fracassasse, deveria ser a Rússia e não a Ucrânia que o descumprisse. A dupla também estava ansiosa em evitar uma confrontação militar.  Por causa dessa atitude, Hollande e Merkel foram levados a tolerar violações russas e separatistas ao cessar-fogo, e não obstante insistir que a Ucrânia o cumprisse ao pé da letra. Ao tomar uma posição neutra na questão de como o Presidente Poroshenko cumpriria as exigências do acordo ambíguo, eles reforçaram a vantagem do Presidente Putin.      

                  Concluído o ambíguo acordo, a Ucrânia beirou o colapso financeiro, por um atraso na entrega do pacote do FMI de salvação financeira, até onze de março de 2015. O nadir foi atingido em fevereiro, quando o povo ucraniano perdeu a confiança na moeda nacional, a hryvnia.    Transações públicas oficiais foram suspensas, e o valor da hryvnia no mercado negro oscilou entre trinta e quarenta por dólar americano. Desde essa data, houve certa recuperação, com câmbio entre vinte e vinte e cinco para o dólar estadunidense.

                   Quando Soros visitou a Ucrânia em abril último, se deparou com uma contradição entre a realidade objetiva (em claro processo de deterioração), e o zelo reformista da nova Ucrânia que se achava sob tremenda pressão política, econômica e militar, mas que continuava a seguir em frente com as reformas, que estava tendo um efeito cumulativo.

                    Muitas leis continuaram a ser aprovadas para preencher os requisitos do FMI e, mais recentemente, do Acordo de Minsk ! Os oligarcas continuavam a defender os próprios interesses, até que o mais poderoso deles, Igor Kolomoisky, tentou usou a própria milícia para manter o controle de uma subsidiária da Naftogaz.  O governo, contra a parede, conseguiu derrotar o oligarca.

                    Tal constituíu o chamado turning point, uma mudança determinante e decisiva. Além de o Banco Central estabelecer controle sobre o sistema bancário, outros oligarcas, como Dmytro Firtash e Rinat Akhmetov  passaram a ser submetidos a maior controle.

                    Com a explosão de nova crise na Grécia, os problemas da Ucrânia aumentaram, seja por afastar a atenção das autoridades européias da Ucrânia, assim como as levando a tratá-la como se fosse uma outra Grécia.

                     A reação de Frau Merkel tampouco foi firme como no passado. A sua atitude em relação a Atenas foi muito mais intensa, a ponto de levá-la a entrar em conflito com o seu Ministro das Finanças, Wolfgang Schäuble. No entender de Soros, a Chanceler Merkel gastou muito de seu capital para manter a Grécia na Zona do Euro,o que fará que a Ucrânia fique sem o seu apoio no que tange ao controverso acordo de Minsk.

                      No entanto, a esperteza de Putin encontrou pela frente uma hábil decisão de Kiev. O parlamento ucraniano estabeleceu status especial para os enclaves do Donbas, ao aprovar lei que transcreveu in totum o ambíguo texto do acordo de Mink verbatim . Através dessa disposição do Parlamento ucraniano, criou-se um problema financeiro para o Presidente Putin, ao negar fundos para os enclaves até que eles cumpram com a Lei ucraniana e convoquem eleições.

                     Mas há limites para flexibilidade com os separatistas, e para concessões unilaterais a esses mesmos separatistas. Recente choque sangrento em frente do Parlamento em Kiev mostrou que a paciência dos ultranacionalistas está no limite, e eventual  rebelião não pode ser afastada, se houver novas provocações.

                     A Europa, e Bruxelas em particular, não estaria dando para a Ucrânia a importância que ela faz por merecer. A nova Ucrânia parece empenhada em grande esforço de recuperação da imagem nacional. O problema estaria em que há claros limites de que tais esforços carecem de ser respeitados e apoiados.

                     O tamanho da Ucrânia levou decerto ao presidente da Rússia a organizar não só a invasão da Crimeia, mas também instilar a revolta através do levante 'separatista', que é bancado em grande parte através dos chamados 'voluntários russos' e de farto equipamento bélico, enquanto a Alemanha de Frau Merkel e seu aliado François Hollande se negam a abastecer Kiev com equipamento que lhe dê condições de fazer frente à invasão russa.

                     Como Soros assinala com sutileza de paralelepípedo, Bruxelas e a Comunidade Europeia podem escolher entre próspera e potente Ucrânia - cujo exército tem ultimamente ganho em capacidade e eficiência militar - ou então transfomar-se em mais um estado-fracassado e este seria respeitável, com mais de quarenta milhões de pessoas.

                       Ainda é tempo de transformar a Ucrânia em um próspero e militarmente respeitável Estado, mais uma adição positiva a União Europeia. Ainda mais pela circunstância de que, por forma de treinamento que terá escapado a gospodin Vladimir Putin, quando iniciou a partir de fevereiro/março de 2014 esse seu estranhíssimo programa, sem querer dotou Kiev de exército com força e capacidade de ação respeitável para enfrentar o urso russo.

 

(Fonte:  artigo da New York Review of Books: Ukraine & Europe: What should be done?, by George Soros)                 



[1] quando a Grã-Bretanha controlava o mar.

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