Não é
necessário acompanhar de perto os atuais renovados incidentes na antiga
Palestina, para que se tenha reação a princípio visceral e, em seguida, fundada
na experiência da realidade da situação marcada pela injustiça e a hostilidade
no terreno, assim como amarga consciência de crise de várias décadas, que não é
fruto de oportunidades por acaso perdidas, mas sim urdida por governo que trata
como habitantes de terra ocupada a remanescente sociedade árabe-palestina.
Mesmo no
período que antecedeu ao primeiro conflito armado entre a maioria palestina e
as tropas judaicas, não há exemplo que comparar-se possa às características que
têm presidido ao tratamento, inspirado pelo governo de Benjamin Netanyahu, aos
agricultores e moradores palestinos de Israel.
Decerto graças
a longa convivência pacífica, as relações entre a maioria palestina e os
segmentos judaicos não tinham sido
marcadas pelas características que ora presidem a crise na relação das
duas comunidades, cujos papéis políticos respectivos estão ora trocados.
Para melhor
avaliar o atual estágio de desagregação nestas relações, parece oportuno que se
tenham presentes algumas premissas elementares.
Os chamados Acordos de Oslo, assinados com fanfarra
e grandes expectativas nos jardins da Casa Branca, não eram o resultado de desultório
esforço para dar novo viés a tal relacionamento, marcado este pela esperança
concreta e a perspectiva da construção de paz duradoura. Na presença do
Presidente Bill Clinton, firmados por Yasser Arafat, do lado palestino, e Yitzhak
Rabin, primeiro ministro e Shimon Peres, ministro do exterior de Israel,
malgrado a expectativa então prevalente, os famosos acordos não constituiriam
infelizmente o ambicionado prelúdio então nas esperanças compartilhadas pelas
duas comunidades.
Como já
observei nestas linhas, o malogro da nova via aberta para a esperança de um
porvir livre da crise-mãe deve ser partilhado pelos dois povos. A inexperiência
dos negociadores da Palestina não encetaria o caminho indispensável para a
criação de fundamentos seguros para as relações entre os dois Povos. Esse
malogro diplomático se deveria sobretudo à carência de condições abrangentes
para estabelecer relações de justiça e de paridade entre os dois Povos.
O câncer que
destruiria a confiança indispensável, e as condições de justiça paritária que
representavam o âmago dos Acordos foram a um tempo estimulado, e por outro,
negligenciado pelos redatores palestinos. Nesse quadro, a grande oportunidade
da Paz autêntica foi perdida por graves omissões nos aludidos Acordos, e por
consequentes insidiosas deturpações da respectiva índole. No seu entusiasmo, os
negociadores palestinos não prepararam os artigos necessários para extirpar na
raiz a criatura maligna dos núcleos de assentamento dos colonos (vindos a mor
parte de ultramar estadunidense, mas também do Leste europeu), que desvirtuaria
o equilíbrio existente - e sobretudo a atmosfera de boa fé - entre judeus e
árabes.
Tampouco teve
o gabinete Rabin, e os que lhe seguiram, a coragem política de põr termo a tal
maligna raiz, que fatalmente tenderia a esvaziar do seu verdadeiro e liberador
sentido os Acordos de Oslo. Mesmo para quem viveu de longe o caráter promissor
do grande documento, é com fundo pesar que assistimos a processo tão deplorável
quanto o escárnio da esperança por uma direita que parecia renovar-se pela
origem obnóxia de suas indefensáveis pretensões, e, por outro lado, pela mão
desleal de sorte madrasta, que firmaria, seja pelo ignavo assassínio de um dos
firmatários do Acordo, Yitzhak Rabin, seja pelas tenebrosas visões de novas
lideranças israelenses, como Ariel Sharon e seu discípulo Bibi Netanyahu, que,
com a habilidade da pequena política, prepararam, com míopes e demagógicas
visões, o terreno para desgraças futuras.
Infelizmente, os Estados Unidos da América, o
grande protetor de Israel, por conta de processo surpreendente, mas não sem
antecedentes históricos, permitiria que por força desse personagem - que para
muitos não passa de uma algaravia ininteligível, e para outros, um astuto artífice
de males - a musa Clio[1] -
o caráter da relação entre mestre e discípulo, ou senhor e criado, acusasse
sobretudo nos anos setenta uma metamorfose que não é sem exemplo na História.
Máxime, no governo de Richard Nixon, e com a superveniência de ulterior guerra
entre o Egito de Anuar Sadat e Israel, o então Secretário de Estado Henry
Kissinger faria enormes concessões ao antigo protegido pela Superpotência,
concessões essas que tenderiam a desvirtuar a relação com o estado cliente -
que assumiu as rédeas que incumbiam à potência diretora.
Fundado em
apoio interno a Israel pela comunidade judaica, e pelo peso dessa influência
sobretudo em estados do leste americano, o eixo diretor dessa relação sofreria
mudança profunda, que alteraria o papel de guia estadunidense, que são exemplos
os presidentes anteriores, como o democrata Harry S Truman e o republicano
Dwight D. Eisenhower.
Para que se
tenha ideia do peso atual que tem um político desmoralizado sob muitos aspectos
(mas em especial por regar o jardim do dissenso nas relações entre judeus e
palestinos) como Benjamin Netanyahu, não é exagero afirmar que para ele
arranjar discurso na grande sala da Câmara de Representantes (e que é o palco
habitual das mensagens anuais ao Povo pelos Presidentes estadunidenses) é coisa
de somenos, como se viu na alocução de Bibi contra o acordo nuclear, que seria
firmado pelas principais potências com o Irã dos ayatollahs. O palco não lhe foi de grande serventia, eis que os
seus temores pareceram excessivos à opinião americana, e por isso, malgrado
tivesse concedida a honraria, para o Primeiro Ministro de Israel seria de
nenhuma serventia.
Não obstante a
arrogância de personagens como Netanyahu - que não trepidara em apoiar o
candidato republicano, o hoje quase esquecido Mitt Romney, contra a reeleição
de Barack Obama - tal não seria um entrave duradouro nas suas relações com a
Casa Branca.
Quando Mahmoud
Abbas, da tribuna da Assembleia Geral das Nações Unidas, chegaria ao
passo de cancelar os Acordos de Oslo, pode-se dizer que em termos de ironia da
História, aquela já provecta tribuna terá visto espetáculos até maiores.
Tampouco terá impressionado àqueles que do tema algo conheciam, houvesse o
presidente da Autoridade Palestina se sentido obrigado a tal gesto que aos
partícipes da cerimônia, seja pessoalmente, seja pela transmissão simultânea,
pareceria algo de todo incompreensível, que dizer de extremo mau gosto.
E a dita
ironia se transforma em sarcasmo, ao deparar os protestos de Netanyahu quanto à
declaração de nulidade de tais Acordos.
O histórico
das relações de palestinos e israelenses hoje é apenas um roto e desbotado pano
de fundo se nele procurarmos um mapa, mesmo que artesanal e rudimentar, das
perspectivas de uma frutífera interação desses dois povos, a que está associada
a Jerusalem que, por muitos séculos, abrigou os sonhos e não só dessas duas
comunidades.
Como
perniciosa consequência da guerra
dita dos seis dias (cinco a dez de junho de 1967), Israel se apossou da
margem ocidental do rio Jordão, na qual então os palestinos estavam solidamente
implantados, assim como da Jerusalém na época sob controle do Reino hashemita
da Jordânia. Desaparecia na prática o significado político da ponte Allenby, modesta construção, mas
de potenciais grandes consequências para os personagens que cruzaram sob a
regra do incógnito, como a Primeira Ministra Golda Meir como mensageira para o
então rei Abdul da Jordânia.
A partir
da imprudente entrada no conflito dos seis dias pelo então jovem Rei Hussein da
Jordânia, se transformaria de modo radical a sorte da comunidade palestina,
antes subordinada ao Reino Hashemita, que passaria, junto com a chamada
Jerusalém árabe para o controle de Israel.
Desde
então, a despeito de Resoluções do Conselho de Segurança têm crescido e muito
os assentamentos dos chamados colonos, muitos procedentes dos Estados Unidos,
assim como da Rússia, que se tem apossado de terras ancestrais de palestinos.
A partir de
1966 e o desastroso resultado de uma guerra que pelo despreparo do lado árabe,
e a brutal diferença em termos de proficiência bélica e de armamentos, teriam
pesadas consequências sobre o povo palestino.
Por força dos assentamentos de colonos, os palestinos se viram
despojados de suas terras de cultivo.
Malgrado
terem o direito do seu lado, por intermédio de inúmeras e incisivas Resoluções
do Conselho de Segurança das Nações Unidas, a cumplicidade americana - na
prática, criando um sistema de duas faces, em que o direito de posse, ainda que
resguardado pela lei internacional, na prática constituía apenas um véu de
conveniência que não impediu caísse a sua posse, inda que ilegal, nos braços
dos chamados colonos, vindos eles de todos os rincões do oportunismo deslavado.
Naquele
vasto espaço - se medido no sistema de mensuração da antiga agricultura -
mostrava uma face ambivalente. Os donos legais da terra se viram desapossados,
pela chamada lei do vencedor, ainda que o Conselho de Segurança nominalmente
continuasse a proclamar serem eles os
reais proprietários. Já exclamara na Antiguidade romana o Rei gaulês Breno 'Vae Victis!' (Ai dos vencidos!), e pelo
visto, ainda que sobraçando os títulos que corroboram a sua propriedade
legítima, os infelizes palestinos sofriam as consequências da derrocada árabe.
O Esbulho da Terra e suas consequências hodiernas.
O sofrimento
palestino e a consequente crise tem sido considerado como a mãe de todas as
crises médio-orientais. Israel e seu grande protetor têm na sua existência
funda responsabilidade.
Essa
responsabilidade, de certa forma, tem aumentado nas últimas décadas, diante do
poder do estado israelense, e sobremodo de sua crescente desenvoltura nos
últimos anos, que é decorrência clara da complexa relação entre a dita potência
tutelar - que por força do referido em parágrafos acima tornou-se uma
quase-ficção - e o estado-cliente, ganhando uma extensão de afirmação que lhe
permite ignorar na prática as resoluções do CSNU.
Por outro
lado, corolário dessa situação é a afirmação cada vez maior de uma postura do
Estado israelense que o afasta da comunidade internacional, pela sistemática
denegação dos direitos palestinos. Complica ainda mais o problema a molesta
circunstância de que a Superpotência - e o respectivo presidente - não dispõe
mais de um poder, senão de controle, mas de moderação do estado-cliente (que o
é, em muitos aspectos, tão só na
aparência).
Enganam-se e
redondamente aqueles que acreditam que Israel, detentor de bombas atômicas,
está acima do bem e do mal. A tibieza dos moradores da Casa Branca nos últimos
tempos - em que o seu comportamento difere radicalmente do de antecessores mais longínquos, como Harry
Truman e Dwight Eisenhower - e nisso Barack Obama infelizmente não é exceção, nada têm contribuído para criar condições
objetivas para solucionar (ou encaminhar a respectiva solução, em linguagem
ajustada às circunstâncias) o que pode ser havido como a mãe de todas as crises
no Oriente Médio.
A injustiça
quando arraigada e defendida pelos órgãos do estado israelense, como o é a
magistratura, sem falar nos braços da segurança e da ordem (que, às mais das
vezes, funcionam como opressores objetivos do povo árabe-palestino), essa
injustiça, repito, funciona como poderoso auxiliar na opressão de uma
comunidade que também possui larga, milenar mesmo permanência naquelas terras.
Nas últimas
décadas, a história de Israel tem sido assinalada por diversas manifestações do
povo árabe-palestino que, apesar de ter oficialmente reconhecidos os
respectivos direitos à língua e à propriedade, na prática o exercício de tais
direitos (inclusive de deputados palestinos no Knesset [2] )
só consegue lograr o respeito que em geral vem acompanhado do medo, através de
insurreições populares, como são as Intifadas, que marcam a história recente do
Estado de Israel.
Um dos últimos
primeiros ministros de Israel, Ariel Sharon - a que a violência sempre esteve
associada, como no seu comportamento no Líbano, v.g. - trataria de marcar a sua
presença no momento político israelense, através de um ato de índole provocatória
e mesmo explosiva, qual seja a sua desassombrada visita no início de 2001 à
Esplanada das Mesquitas, o local mais sagrado para o devoto palestino.
Com a
ascensão ao poder de Benjamin Netanyahu,
o nível do relacionamento da maioria judaica com a comunidade palestina
tem baixado e de forma preocupante. Bibi, como é conhecido em Israel, se tem
valido da tensão no relacionamento entre segmento judeu e o árabe de forma que
beira o irresponsável, quando v.g. se
valeu para amedrontar potenciais eleitores pró-candidatos de sua chapa de o que
poderia ocorrer naquele país, se os árabes-palestinos ganhassem a
maioria...Diabolizar o adversário nunca foi fórmula apropriada para uma
democracia.
A par disso,
se registra hoje em Israel uma generalizada rejeição aos cidadãos de etnia
palestina, a ponto de que, por desconfortáveis com o ambiente assim criado,
muitos desses árabes venham emigrando para os Estados Unidos e outros países em
que se sintam em ambiente menos tenso, desprovido de preconceitos e eventuais
dissabores.
Os atuais ataques
de jovens e menos jovens da comunidade árabe-palestina que se voltam contra os
habitantes judaicos são decorrência clara da má-vontade com que são de hábito
tratados, as iteradas suspeitas que muitos inocentes vem sofrendo da maioria do
povo israelense, e do modo brutal - que guarda não poucas semelhanças do
tratamento dispensado pelos brancos americanos contra os afro-descendentes,
tratamento esse que é muita vez coonestado por juris sulinos, em que assassinos
são inocentados (como o pobre negro morto por atravessar desarmado uma quadra de classe média, por um segurança de
plantão). O fato de Obama ter-se a ele
referido como que bem poderia ser o filho homem que ele não teve não
sensibilizou o júri da Flórida que considerou inocente o dito segurança.
Sem embargo,
mais ao norte, a violência de policiais americanos contra afro-americanos tem
merecido severo, mas adequado tratamento da Justiça, como no caso em que a
morte de um demonstrante negro foi provocada pela maneira cruel com que fora
amarrado no chão de uma caminhonete policial.
Os policiais e
militares israelenses não tem tido pela frente qualquer reação oficial que lhes
determine agir com o respeito e as precauções necessárias diante de eventuais
cidadãos e cidadãs palestinas que pela sua própria presença já seriam
considerados como ameaça à segurança dos israelitas.
Está nesta
funda diferença no tratamento que lhes é atribuído - sentindo-se considerados
na sua própria casa como estranhos - que é a causa-mãe de todos os percalços e
violências (tanto as pequenas e mesquinhas, quanto as grandes). Por isso, não
deve estranhar muito que esta gente sofrida venha a ser cotidianamente rechaçada e maltratada pela má-vontade
coletiva, que lhe torna a presença em ambientes públicos e o eventual uso que
lhes assiste de transportes coletivos como merecedor de surda desconfiança e da
agressiva suspicácia desses agentes públicos ditos de segurança, mas que
poderiam ser, pela própria atitude insolente e arrogante, vistos como similares
do mesmo segurança que matou o jovem negro pelo exclusivo fato de que era negro (e por conseguinte suspeito). Em
verdade, hostilizado pela atitude confrontativa do meganha que despeja os
respectivos preconceitos sociais enquanto endossa a veste de um alegado
protetor da ordem social - só que a ordem que ele defende, e pela qual ele
espezinha o cidadão palestino (considerado, na prática, de segunda ordem) é
feroz caricatura de uma realidade que distingue entre subpessoas e integrantes da classe do poder, identificada no
israelita.
Quem pode
considerar essa caricatura soez da antiga realidade sul-africana (e de tantas
outras condições de cidadãos de segunda ordem) como o reflexo de uma
democracia, em que todos devem ser iguais perante a lei.
Como
surpreender-se assim que a comunidade palestina - se tem meios opta por
transferir-se a terras em que seja tratado como gente igual às demais - diante
do aut-aut de funda injustiça, se
revolte contra a situação - em que tem direito a duas atitudes: curvar-se
diante dela, e passar em silêncio as ofensas e contumélias do dia-a-dia - ou
então reagir e ter o seu momento breve de sentir-se validado por atitude que
acredita digna.
Refugiar-se
na covardia e no silêncio só tende a agravar a revolta interior. Viver em meio da injustiça (a mesma que tira
as terras de seus parentes) constitui uma dose que o pobre mortal que só é
perseguido e maltratado por ser o antigo habitante daquelas mesmas terras pode ser
considerado por alguém como uma postura válida e segura?
Não se tenha
ilusões sobre a violência da sociedade hegemônica em Israel. Yitzhak Rabin caíu vitima do punhal
assassino de israelita de extrema
direita.
Agora, ao
lamentar que inocentes tombem vítima dos ataques de jovens palestinos - o que é,
por certo, deplorável e condenável - não deve esquecer por um momento que cada
injustiça, safanão e prepotência de quem chamou os cães de guarda dessa
população que defrauda as terras palestinas e os individualiza agressivamente
nos logradouros públicos, não é faina para orgulhar-se e nem esperar que os
seus frutos não possam ser outros que a raiva diante de injustiça, que se lordeia no preconceito, que
é a outra cara desta mesma injustiça.
( Fontes: O Estado de S. Paulo; William Bundy, A Tangled Web, Hill and Wang, New York,
1998 )
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