segunda-feira, 3 de agosto de 2015

O Crime nos Mares da China


                                    
          Como em outros continentes, em alto-mar, nos chamados mares do Sul ou mares da China, o crime levanta  sua hórrida cabeça.

           O que lhes garante não só a sobrevivência, mas a própria presença continuada é a falta de uma repressão legal digna deste nome, seja fruto de generalizada corrupção, ou de fraca e, mesmo, conivente  atuação de esparso e negligente policiamento marítimo.

           Em condições existenciais que semelham reminiscentes dos lúridos navios negreiros que transportavam como mercadorias os negros africanos, vendidos pelos sobas do litoral, para as feitorias de el-Rei, e dali em condições inenarráveis faziam a longa oceânica travessia, morrendo como moscas em fétidos porões. Eram os infelizes que se destinavam às lavouras da colônia, e uns pouco com mais sorte e aparência, à criadagem das mansões.

           Reportagem no New York Times – já traduzida por jornalão de Pindorama – nos chega sob o título: Escravos do Mar – A miséria humana que alimenta gado e bichos de estimação.

           Como há de compreender-se, a frota tailandesa de pesqueiros tem fome de marinheiros, muitos deles reduzidos à condição de escravos.

            Para tanto, a mão-de-obra que procuram é a indocumentada. Depois de assumida a independência do jugo colonial – na segunda metade do século vinte – grande parte dos países africanos ao sul do Sahel não constituem modelo de boa governança. Mesmo para o Brasil, ali a corrupção, em geral, está de mãos dadas com a eternização dos presidentes.

             Não são muitas as amostras na África de países democráticos e bem geridos. A própria África do Sul – que, decerto, muito difere da maioria – não tem mais na presidência quem de longe se compare com Nelson Mandela. A crise da emigração africana para o Eldorado europeu não deveria surpreender a Europa. Depois de sua longa estada no Continente negro, na exploração e explotação colonial, os diversos países europeus se retiraram das respectivas colônias. Se não as deixaram preparadas para a independência, a sua atuação posterior, presenciou o roubo sistemático de ditadores corruptos, com eles negociando e convivendo. A África de hoje poderá ter exceções, mas por onde vá o viajante encontrará virtuais presidentes vitalícios, que têm levado a corrupção a profundezas que fazem lacrimejar muitos políticos de aquém-mar.

               Os ídolos protetores dessa espécie voraz carecem de um realce especial. Para tanto, creio que exemplo apropriado é dado pelo ditador Mobutu. Na verdade, o primeiro presidente do ex-Congo Belga seria o grande Patrice Lumumba. Ele seria o mártir desse rico país, eis que, como governante honesto e idealista, não se adequava às regras dos neocolonialistas. Por isso, cuidaram de matá-lo e puseram no seu lugar Moisé Tchombé, a que sucederia talvez o maior cleptocrata africano, Mobutu Seseseko, com quem o Ocidente sempre teve boas relações, fundadas, pesa-me dizer, nos mútuos interesses.

               Que o leitor me perdoe esse excurso muito além da Taprobana, mas talvez servirá para mostrar que a corrupção é um monstro que se alimenta de trabalho escravo, de imensas florestas-virgens,  da exploração do Estado em próprio proveito e de muitas outras avenidas. Por conseguinte, não fará ao cabo muita diferença ética se o poder central desse crime organizado se abanque em palácio presidencial, ou se ele se pulverize em miríades de zangões, que cuidem da explotação marinha no sentido lato da palavra.

                Já verificamos que a queda da Somália, após a partida de Siad-Barre, e consequente regressão a Estado falido, criou as condições necessárias para a formação de base incipiente de apoio à pirataria no Oceano Índico. Em análise à parte me ocupei desse tópico que passaria a interessar deveras os armadores de navios mercantis apresados pelos piratas somalis, e sobretudo aos infelizes comandantes, oficiais e tripulantes desses barcos, muitos deles já plataformas de containers. As características desse regime mostram que a maldade ou o crime marinho organizado (também denominado pirataria) é uma velha instituição da Humanidade. Os piratas da Cilícia já eram muito bem conhecidos no auge do Império Romano, a que por certo não contribuíram, embora a sua atividade de forçada e brutal apropriação indébita do alheio tivesse alguns traços comuns com a Roma Imperial.

                 O velho Mediterrâneo, com a irrupção dos turcos otomanos, e a infeliz queda de Bizâncio, a derradeira presença no velho Bósforo do poder romano, se tornaria palco de muita atividade lucrativa, mas igualmente de muita miséria e sofrimento. Foi bom, de certo modo, que o grande Miguel de Cervantes tivesse utilizado, pelo menos em parte, graças ao próprio engenho e arte,  sua vivência como prisioneiro do Bey de Argel, em obra prima da Humanidade, Don Quijote de la Mancha.

                 Como verão esses belos tipos faceiros, passageiros de um hoje imaginário bonde a seguir por trilhos que não mais existem, há muitos exemplos de um bem que possa rebentar em meio ao inço e as ervas daninhas.

                 Agora, o crime no alto mar, pela falta da presença repressiva da Lei, é decorrência de virtual regime de laissez faire[1].

                 A reportagem no Times que motivou esse artigo mostra que o alto mar também se repete no dédalo dos chamados mares da China. Os pesqueiros, embarcações mal-cuidadas e mal-mantidas carecem de tripulantes que se acomodem com as duras condições desse mister. Remontando à lógica prevalente no capitalismo do século XIX, que Karl Marx nos retrata no Capital, e da absoluta necessidade que os capitães de empresa – e pelo visto os capitães de barco  - carecem, i.e.,  maximizar a mais-valia e em especial arrancar o quase impossível dos braços disponíveis, para baratear os custos das atividades respectivas.

                   No artigo de referência, mostra-se que a preferência dos capitães de barco, segundo orientação de seus patrões, está no engajamento de trabalho ilegal. Não é por altruismo que esses senhores agem dessa forma, mas tendo presentes as vantagens deste tipo de mão de obra: (a) em sendo clandestino no país (no caso a Tailândia), eles não possuem qualquer documento e, portanto, sem condição de  reivindicar ou reclamar perante qualquer autoridade desse país; (b) seu virtual desaparecimento por eventual ‘acidente’ não deixará marca; e (c) transformado em escravo, o seu custo de manutenção ajuda ao armador oferecer produto em condições muito vantajosas para o consumidor (viveiros de peixe, animais de estimação e forragem para o gado).

                      A reportagem narra, com  grafismo que talvez exigisse aviso a leitores mais sensíveis, outras características deste especial ‘mercado de trabalho’. As embarcações são em geral velhas e malconservadas; a alimentação dos ‘tripulantes’ (excluídos, é claro, o grupo de guardas) é pobre e ruim. Os castigos são pesados e brutais: reclusão em compartimentos mínimos e fétidos, por dias a fio. Inexiste higiene e a escuridão é total; o tratamento dado aos enfermos consiste em lançamento ao mar; e para aqueles que desafiem esta situação, cabeças podem rolar e não metaforicamente.

                     Por fim, as condições da mercadoria, a diminuição nos recursos marinhos, levam os comandantes a longas permanências em alto mar, com vistas a maximizar a carga a ser oferecida. Esse comprido afastamento torna absoluta a dependência destes infelizes sob um regime sem-lei, e sem qualquer expectativa próxima de acesso às autoridades portuárias e policiais.   

                             

( Fontes: The New York Times; Luís de Camões, Miguel de Cervantes; Karl Marx )



[1] Deixai fazer, o que reflete o permissivismo do braço marítimo da Lei, escudado na virtual omissão  de um regime legal com maior eficácia.

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