Como em outros continentes, em alto-mar,
nos chamados mares do Sul ou mares da China, o crime levanta sua hórrida cabeça.
O que lhes
garante não só a sobrevivência, mas a própria presença continuada é a falta de
uma repressão legal digna deste nome, seja fruto de generalizada corrupção, ou
de fraca e, mesmo, conivente atuação de
esparso e negligente policiamento marítimo.
Em
condições existenciais que semelham reminiscentes dos lúridos navios negreiros
que transportavam como mercadorias os negros africanos, vendidos pelos sobas do
litoral, para as feitorias de el-Rei, e dali em condições inenarráveis faziam a
longa oceânica travessia, morrendo como moscas em fétidos porões. Eram os
infelizes que se destinavam às lavouras da colônia, e uns pouco com mais sorte
e aparência, à criadagem das mansões.
Reportagem
no New York Times – já traduzida por
jornalão de Pindorama – nos chega sob o título: Escravos do Mar – A miséria humana que alimenta gado e
bichos de estimação.
Como há de
compreender-se, a frota tailandesa de pesqueiros tem fome de marinheiros,
muitos deles reduzidos à condição de escravos.
Para tanto, a mão-de-obra que procuram é a
indocumentada. Depois de assumida a independência do jugo colonial – na segunda
metade do século vinte – grande parte dos países africanos ao sul do Sahel não
constituem modelo de boa governança. Mesmo para o Brasil, ali a corrupção, em
geral, está de mãos dadas com a eternização dos presidentes.
Não são muitas as amostras na África de países
democráticos e bem geridos. A própria África do Sul – que, decerto, muito
difere da maioria – não tem mais na presidência quem de longe se compare com Nelson Mandela. A crise da emigração
africana para o Eldorado europeu não deveria surpreender a Europa. Depois de
sua longa estada no Continente negro, na exploração e explotação colonial, os
diversos países europeus se retiraram das respectivas colônias. Se não as
deixaram preparadas para a independência, a sua atuação posterior, presenciou o
roubo sistemático de ditadores corruptos, com eles negociando e convivendo. A
África de hoje poderá ter exceções, mas por onde vá o viajante encontrará virtuais
presidentes vitalícios, que têm levado a corrupção a profundezas que fazem
lacrimejar muitos políticos de aquém-mar.
Os
ídolos protetores dessa espécie voraz carecem de um realce especial. Para
tanto, creio que exemplo apropriado é dado pelo ditador Mobutu. Na verdade, o
primeiro presidente do ex-Congo Belga seria o grande Patrice Lumumba. Ele seria o mártir desse rico país, eis que, como
governante honesto e idealista, não se adequava às regras dos neocolonialistas.
Por isso, cuidaram de matá-lo e puseram no seu lugar Moisé Tchombé, a que
sucederia talvez o maior cleptocrata africano, Mobutu Seseseko, com quem
o Ocidente sempre teve boas relações, fundadas, pesa-me dizer, nos mútuos
interesses.
Que o leitor me perdoe esse excurso muito além
da Taprobana, mas talvez servirá para mostrar que a corrupção é um monstro que
se alimenta de trabalho escravo, de imensas florestas-virgens, da exploração do Estado em próprio proveito e
de muitas outras avenidas. Por conseguinte, não fará ao cabo muita diferença
ética se o poder central desse crime organizado se abanque em palácio
presidencial, ou se ele se pulverize em miríades de zangões, que cuidem da
explotação marinha no sentido lato da palavra.
Já
verificamos que a queda da Somália, após a partida de Siad-Barre, e consequente
regressão a Estado falido, criou as condições necessárias para a formação de
base incipiente de apoio à pirataria no Oceano Índico. Em análise à parte me
ocupei desse tópico que passaria a interessar deveras os armadores de navios
mercantis apresados pelos piratas somalis, e sobretudo aos infelizes
comandantes, oficiais e tripulantes desses barcos, muitos deles já plataformas
de containers. As características
desse regime mostram que a maldade ou o crime marinho organizado (também
denominado pirataria) é uma velha instituição da Humanidade. Os piratas da
Cilícia já eram muito bem conhecidos no auge do Império Romano, a que por certo
não contribuíram, embora a sua atividade de forçada e brutal apropriação
indébita do alheio tivesse alguns traços comuns com a Roma Imperial.
O
velho Mediterrâneo, com a irrupção dos turcos otomanos, e a infeliz queda de
Bizâncio, a derradeira presença no velho Bósforo do poder romano, se tornaria
palco de muita atividade lucrativa, mas igualmente de muita miséria e
sofrimento. Foi bom, de certo modo, que o grande Miguel de Cervantes tivesse
utilizado, pelo menos em parte, graças ao próprio engenho e arte, sua vivência como prisioneiro do Bey de Argel,
em obra prima da Humanidade, Don Quijote
de la Mancha.
Como
verão esses belos tipos faceiros, passageiros de um hoje imaginário bonde a
seguir por trilhos que não mais existem, há muitos exemplos de um bem que possa
rebentar em meio ao inço e as ervas daninhas.
Agora, o crime no alto mar, pela falta da presença repressiva da Lei, é
decorrência de virtual regime de laissez faire[1].
A
reportagem no Times que motivou esse
artigo mostra que o alto mar também se repete no dédalo dos chamados mares da
China. Os pesqueiros, embarcações mal-cuidadas e mal-mantidas carecem de
tripulantes que se acomodem com as duras condições desse mister. Remontando à
lógica prevalente no capitalismo do século XIX, que Karl Marx nos retrata no Capital, e da absoluta necessidade que
os capitães de empresa – e pelo visto os capitães de barco - carecem, i.e., maximizar a mais-valia
e em especial arrancar o quase impossível dos braços disponíveis, para baratear
os custos das atividades respectivas.
No
artigo de referência, mostra-se que a preferência dos capitães de barco,
segundo orientação de seus patrões, está no engajamento de trabalho ilegal. Não
é por altruismo que esses senhores agem dessa forma, mas tendo presentes as vantagens deste tipo de mão de obra: (a)
em sendo clandestino no país (no caso a Tailândia), eles não possuem qualquer documento
e, portanto, sem condição de reivindicar
ou reclamar perante qualquer autoridade desse país; (b) seu virtual
desaparecimento por eventual ‘acidente’ não deixará marca; e (c) transformado
em escravo, o seu custo de manutenção ajuda ao armador oferecer
produto em condições muito vantajosas para o consumidor (viveiros de peixe,
animais de estimação e forragem para o gado).
A reportagem narra, com grafismo
que talvez exigisse aviso a leitores mais sensíveis, outras características deste
especial ‘mercado de trabalho’. As embarcações são em geral velhas e malconservadas;
a alimentação dos ‘tripulantes’ (excluídos, é claro, o grupo de guardas) é
pobre e ruim. Os castigos são pesados e brutais: reclusão em compartimentos
mínimos e fétidos, por dias a fio. Inexiste higiene e a escuridão é total; o
tratamento dado aos enfermos consiste em lançamento ao mar; e para aqueles que
desafiem esta situação, cabeças podem rolar e não metaforicamente.
Por fim, as condições da mercadoria, a diminuição nos recursos marinhos,
levam os comandantes a longas permanências em alto mar, com vistas a maximizar
a carga a ser oferecida. Esse comprido afastamento torna absoluta a dependência
destes infelizes sob um regime sem-lei, e sem qualquer expectativa próxima de
acesso às autoridades portuárias e policiais.
( Fontes: The New York
Times; Luís de Camões, Miguel de Cervantes; Karl Marx )
[1] Deixai fazer, o que reflete o permissivismo do braço marítimo da
Lei, escudado na virtual omissão de um
regime legal com maior eficácia.
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