domingo, 2 de agosto de 2015

Cincoenta Anos neste Agosto


                                      

           É comum, quase corriqueira, a noção de que avanços sociais são irreversíveis. Que nas democracias os direitos políticos costumam ser invioláveis. Tome-se, por exemplo, o direito dos negros e mestiços nos Estados Unidos de poderem votar (lá o sufrágio é voluntário e não obrigatório, como no Brasil).

          Esta virtual certeza tenderia a reforçar-se se tivermos presente que, nesta semana, a seis de agosto – que cai na quinta-feira – se deveria comemorar a firma pelo Presidente Lyndon B. Johnson da Lei do Direito de Voto, em 1965. Essa Lei deu à comunidade negra a liberdade do voto.

          Naquela ocasião, assim se expressou o 36° Presidente dos Estados Unidos: “Milhões de americanos tem negado o direito de votar por causa de sua cor. Esta lei vai assegurar-lhe este direito de voto.”

          O novo diploma legal eliminou os testes de alfabetização e outras táticas do preconceito contra o negro no Sul (táticas ‘Jim Crow’), bem como incluíu um capítulo importante chamado Seção 5.  Por causa desse dispositivo a Carolina do Norte e mais seis outros Estados do chamado Sul profundo, com histórico de negação racista à franquia do sufrágio, a obrigação de submeter ao Congresso e às autoridades federais em Washington qualquer futura alteração na lei estadual, por pequena que fosse, para apreciação e aprovação  da parte das autoridades em Washington.

          Já em 1968, três anos depois da promulgação da lei, o registro dos negros no sul passara para 62%.  Nas décadas seguintes, a situação continuou melhorando, não só com a eleição de legisladores afro-americanos, mas também com a facilitação do registro eleitoral no Departamento de Viação (nos Estados Unidos não existe a justiça eleitoral) e outros departamentos públicos. Igualmente, se passou a permitir que os cidadãos se registrassem e votassem no mesmo dia; que tivessem os sufrágios contados, mesmo quando depositados em zonas erradas; também podiam votar pelo correio; e, o que é mais significativo, depositar o voto semanas antes do dia da eleição.

            Todos esses avanços foram protegidos pela ‘Lei do Direito de Voto’. Em consequência disso, o número de afro-americanos registrados continuou a aumentar de forma sustentada. Em 2008, quando os Estado Unidos elegeram por primeira vez um Presidente da República de cor, o número de votantes negros a fazer uso desse direito quase igualou na prática o número de votantes brancos.

             Como assinala reportagem realizada pelo New York Times, houve desde então uma súbita reversão de tendência.  Em 2010, na votação intermediária, o Partido Democrata sofreu a chamada tunda (‘shellacking’). Os republicanos se apropriaram de onze assembléias estaduais. Essa maioria do GOP se refletiria no controle da Câmara de Representantes, que os republicanos têm mantido até hoje valendo-se do guerrymander em diversos estados (esses novos ‘burgos podres’ foram redesenhados pelas assembléias estaduais e continuarão válidos muito provavelmente até o próximo recenseamento - que é decenal nos EUA). Não é por acaso, por conseguinte, que o GOP vem controlando desde então a Câmara de Representantes, embora, com o enfraquecimento dos ultra-direitistas  do Tea Party tal bancada venha ‘emagrecendo’. Seria necessária uma enorme maioria para que os Democratas recuperem o controle da Câmara.  Quanto ao Senado, como se sabe, no seu último biênio Barack Obama igualmente não disporá de maioria na Câmara Alta.

                Se Hillary Diane Rodham Clinton for designada candidata pela Convenção democrata e ser a primeira mulher americana a ganhar eleição para Presidente (e ela, ao contrário da Presidenta Dilma Rousseff tomaria o juramento presidencial com grande preparo e bagagem política), pode-se até imaginar vitória sua por grande maioria (a chamada landslide), o que resolveria muitos problemas para os democratas (e para o Povo americano em geral)...

                Muitos sulistas, contudo, não se acomodaram com a equalização de direitos civis (e eleitorais) dos negros em seus estados (o chamado Sul profundo – deep South), que são marcados até hoje por um resistente preconceito. É oportuno lembrar que a Carolina do Norte hasteava até há pouco na sua Legislatura o pavilhão do Sul confederado racista.

                 Dessarte, não foi da noite para o dia que a Regressão à Carta aprovada no governo do texano Lyndon B. Johnson foi lograda pelos estados da antiga Confederação.  Como assinala ótima reportagem de fundo, publicada na revista semanal do New York Times, isto exigiu o chamado trabalho de formiguinha. Nela demonstraram uma paciência e tenacidade que deveria ter sido destinada a causas melhores, e não às do preconceito e da reversão de um amanhã mais livre e realmente igualitário.

                 Semelha que aos Estados Unidos não bastou eleger um Presidente de cor negra. Não só nos antigos estados confederados do Sul profundo, mas também em outros, como na Flórida e até no Ohio, são comuns as práticas denegatórias do voto – ou que criam barreiras, ou tentam dissuadir não só os negros, mas também os votantes latinos de exercer sem maiores empecilhos o respectivo direito ao sufrágio. E a razão não é só preconceituosa: constitui tática habitual do Partido Republicano a criação de dificuldades às comunidades mais pobres, menos letradas, aos negros e aos latinos, de exercer o respectivo direito do sufrágio, pela simples motivo de que toda essa caudal de gente quer melhorar de vida, e tem a funda experiência de que somente através do Partido Democrata e de seus candidatos esse nobre propósito poderá ser efetivado.

                  Infelizmente, a Suprema Corte estadunidense, em sentença de raro cinismo determinou a caducidade da Quinta Seção do histórico Voting Rights Act,  de ainda enorme importância para o respeito do direito das minorias, e, em especial dos afro-americanos, conforme estipulado pela grande contribuição do Presidente Lyndon Johnson ao livre, desimpedido e sem chicanas  exercício do sagrado  Direito de Voto. 

              
                  Depois do sédulo trabalho de escoimar o campo para de novo prepará-lo para replantar as plantas daninhas que objetivam não só dificultar, mas em muitos casos impedir as minorias de negros, latinos, idosos pobres e mais desfavorecidos da sorte de não poderem expressar a própria vontade na urna eleitoral, de modo a possibilitar que o preconceito continue a prevalecer.

  
                   Assim, não foi decerto por acaso que a questão Condado de Shelby versus Holder (que era então o Procurador-Geral da Administração Barack Obama) foi aceita pela Suprema Corte, depois de fazer o circuito da Justiça americana. Completando a inglória faina de desfazer os direitos das comunidades desfavorecidas e citadas acima, o referido processo  solicitou dos ministros do Supremo que derrogassem a Seção 5 da Lei assinada pelo Presidente Lyndon Johnson, em agosto de 1965.

               
                     O presidente da Corte, John Roberts Júnior escreveu a sentença pela maioria conservadora que concordou com a postulação da parte litigante: no seu entender “a Lei de direito ao voto tinha feito o seu trabalho, e era chegada a hora de avançar (sic).”  E ao tomar ciência de que a porta da cancela fora reaberta, as legislaturas estaduais de maioria republicana naqueles Estados retomaram a própria  faina de dificultar e mesmo inviabilizar os votos dessas minorias.

 
                     Não era a primeira vez que John Roberts Jr. tratara da Seção 5 dessa Lei básica no combate ao preconceito e às restrições sulinas da comunidade negra. Na presidência de Ronald Reagan, como assinala o artigo do New York Times, o futuro Chief-Justice (Juiz presidente da Corte Suprema), já tentara neutralizar a dita Seção.  Na época, a sua recomendação não foi aceita, o que só se concretizaria quando à testa da maioria de cinco juízes conservadores contra os quatro liberais.         

 
                     Como se depreende, a luta pelos direitos das minorias – e em especial aquelas do Sul Profundo – em que o preconceito racial ainda mostra o seu hediondo gesto deve prosseguir.

                     
                      É luta comprida, que só aos fracos abate.

                    

 

 
( Fontes:  The New York Times, Gonçalves Dias )

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