É comum,
quase corriqueira, a noção de que avanços sociais são irreversíveis. Que nas
democracias os direitos políticos costumam ser invioláveis. Tome-se, por
exemplo, o direito dos negros e mestiços nos Estados Unidos de poderem votar
(lá o sufrágio é voluntário e não obrigatório, como no Brasil).
Esta virtual
certeza tenderia a reforçar-se se tivermos presente que, nesta semana, a seis
de agosto – que cai na quinta-feira – se deveria comemorar a firma pelo Presidente Lyndon B. Johnson da Lei do
Direito de Voto, em 1965. Essa Lei deu à comunidade negra a liberdade do voto.
Naquela
ocasião, assim se expressou o 36° Presidente dos Estados Unidos:
“Milhões de americanos tem negado o direito de votar por causa de sua cor. Esta
lei vai assegurar-lhe este direito de voto.”
O novo
diploma legal eliminou os testes de alfabetização e outras táticas do
preconceito contra o negro no Sul (táticas ‘Jim
Crow’), bem como incluíu um capítulo importante chamado Seção
5. Por causa desse dispositivo a
Carolina do Norte e mais seis outros Estados do chamado Sul profundo, com histórico de negação racista à franquia do
sufrágio, a obrigação de submeter ao Congresso e às autoridades federais em
Washington qualquer futura alteração na lei estadual, por pequena que fosse,
para apreciação e aprovação da parte das
autoridades em Washington.
Já em 1968,
três anos depois da promulgação da lei, o registro dos negros no sul passara
para 62%. Nas décadas seguintes, a
situação continuou melhorando, não só com a eleição de legisladores
afro-americanos, mas também com a facilitação do registro eleitoral no
Departamento de Viação (nos Estados Unidos não existe a justiça eleitoral) e
outros departamentos públicos. Igualmente, se passou a permitir que os cidadãos
se registrassem e votassem no mesmo dia; que tivessem os sufrágios contados,
mesmo quando depositados em zonas erradas; também podiam votar pelo correio; e,
o que é mais significativo, depositar o voto semanas antes do dia da eleição.
Todos
esses avanços foram protegidos pela ‘Lei do Direito de Voto’. Em
consequência disso, o número de afro-americanos registrados continuou a
aumentar de forma sustentada. Em 2008, quando os Estado Unidos elegeram por
primeira vez um Presidente da República de cor, o número de votantes negros a
fazer uso desse direito quase igualou na prática o número de votantes brancos.
Como assinala reportagem realizada
pelo New York Times, houve desde
então uma súbita reversão de tendência.
Em 2010, na votação intermediária, o Partido Democrata sofreu a chamada
tunda (‘shellacking’). Os
republicanos se apropriaram de onze assembléias estaduais. Essa maioria do GOP se refletiria no controle da Câmara
de Representantes, que os republicanos têm mantido até hoje valendo-se do guerrymander em diversos estados (esses
novos ‘burgos podres’ foram redesenhados pelas assembléias estaduais e
continuarão válidos muito provavelmente até o próximo recenseamento - que é
decenal nos EUA). Não é por acaso, por conseguinte, que o GOP vem controlando desde então a Câmara de Representantes, embora,
com o enfraquecimento dos ultra-direitistas
do Tea Party tal bancada venha
‘emagrecendo’. Seria necessária uma enorme maioria para que os Democratas
recuperem o controle da Câmara. Quanto
ao Senado, como se sabe, no seu último biênio Barack Obama igualmente não
disporá de maioria na Câmara Alta.
Se Hillary Diane Rodham Clinton for
designada candidata pela Convenção democrata e ser a primeira mulher americana
a ganhar eleição para Presidente (e ela, ao contrário da Presidenta Dilma
Rousseff tomaria o juramento presidencial com grande preparo e bagagem
política), pode-se até imaginar vitória sua por grande maioria (a chamada landslide), o que resolveria muitos
problemas para os democratas (e para o Povo americano em geral)...
Muitos
sulistas, contudo, não se acomodaram com a equalização de direitos civis (e
eleitorais) dos negros em seus estados (o chamado Sul profundo – deep South), que são marcados até hoje
por um resistente preconceito. É oportuno lembrar que a Carolina do Norte
hasteava até há pouco na sua Legislatura o pavilhão do Sul confederado racista.
Dessarte, não foi da noite para o dia
que a Regressão à Carta aprovada no
governo do texano Lyndon B. Johnson foi lograda pelos estados da antiga
Confederação. Como assinala ótima
reportagem de fundo, publicada na revista semanal do New York Times, isto exigiu o chamado trabalho de formiguinha. Nela
demonstraram uma paciência e tenacidade que deveria ter sido destinada a causas
melhores, e não às do preconceito e da reversão de um amanhã mais livre e
realmente igualitário.
Semelha que aos Estados Unidos não bastou eleger um Presidente de cor
negra. Não só nos antigos estados confederados do Sul profundo, mas também em
outros, como na Flórida e até no Ohio, são comuns as práticas denegatórias do
voto – ou que criam barreiras, ou tentam dissuadir não só os negros, mas também
os votantes latinos de exercer sem maiores empecilhos o respectivo direito ao
sufrágio. E a razão não é só preconceituosa: constitui tática habitual do
Partido Republicano a criação de dificuldades às comunidades mais pobres, menos
letradas, aos negros e aos latinos, de exercer o respectivo direito do
sufrágio, pela simples motivo de que toda essa caudal de gente quer melhorar de
vida, e tem a funda experiência de que somente através do Partido Democrata e
de seus candidatos esse nobre propósito poderá ser efetivado.
Infelizmente, a Suprema Corte
estadunidense, em sentença de raro cinismo determinou a caducidade da Quinta
Seção do histórico Voting Rights Act, de
ainda enorme importância para o respeito do direito das minorias, e, em
especial dos afro-americanos, conforme estipulado pela grande contribuição do Presidente Lyndon Johnson ao livre, desimpedido e sem chicanas exercício do sagrado Direito de Voto.
Como se depreende, a luta
pelos direitos das minorias – e em especial aquelas do Sul Profundo – em que o preconceito racial ainda mostra o seu
hediondo gesto deve prosseguir.
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