Será exagerado definir
o conflito na Ucrânia como a guerra esquecida? E se ela não aparece no
noticiário internacional, isso quer acaso dizer que a questão estaria
desaparecendo?
A agressão da
Rússia de Putin contra a Ucrânia começou no primeiro semestre de 2014,
notadamente com a tomada da Criméia.
Esta península tinha sido transferida para a Ucrânia, então uma das
repúblicas soviéticas, por Nikita Krushev,
Secretário-Geral do Partido Comunista da
URSS, pouco depois da morte de Joseph Stalin.
Ao ser anexada
por Moscou em 2014, a Crimeia era uma província ucraniana há sessenta anos!
Por outro
lado, esse atentado ao direito internacional público e às Nações Unidas – sem mencionar,
é lógico, o sistema dos pacta sunt
servanda, que existe há séculos para preservar a ordem internacional –
tivera como causa um regulamento de contas contra o governo federal de Kiev. Gospodin Vladimir V. Putin
determinara esse castigo contra a Ucrânia
por dois motivos: (a) a derrubada de
Viktor
Yanukovich em janeiro de 2014 pelo povo ucraniano; (b) a escolha por
esse mesmo povo de Acordo Comercial com a União Europeia, pela sua promessa de melhor
futuro para os ucranianos, ao invés do ensejado por eventual adesão à União
Aduaneira com a Rússia.
Tal bastou
para que Putin determinasse a invasão e anexação da Criméia, ao arrepio da lei
internacional. Por causa dessa ação contra o direito internacional, a Rússia
foi despejada do G-8, e sofreu uma
série de sanções econômicas dos Estados Unidos e de outras potências, em que o
grupo de cupinchas e cúmplices do Presidente russo foi diretamente visado nos
principais bancos e contas respectivas. Outras sanções à província anexada da
Crimeia pela Rússia incluíram suspensão de financiamentos internacionais,
inclusive sendo vedado o uso de cartões de crédito internacional, assim como a
utilização do serviço das principais companhias aéreas do Ocidente.
Como a
Federação Russa é membro do Conselho de Seguranças das Nações Unidas, a
aprovação de sanções contra Moscou por este Conselho é inviável, eis que a
Rússia dispõe de veto. Mas tudo foi feito para economica e financeiramente
dificultar, por outros meios acessíveis ao comércio internacional, para criar
entraves aos interesses de Moscou. Foi de resto aprovada pela Assembleia Geral
das Nações Unidas Resolução (que só tem peso de recomendação) que condena o
governo russo pelo seu desrespeito ao Direito Internacional e comina de ilegal
a anexação da Crimeia. Para vergonha de sua diplomacia, o Brasil se absteve de
votar a favor da aprovação. Note-se que
essa abstenção, uma nódoa em nossos registros, só foi aprovada pelo Itamaraty
por ordem da Presidenta, que deveria saber que com esse acinte ao Direito
Internacional Público se desrespeita norma de nossa Constituição vigente.
A guerra contra a Ucrânia deve integrar o plano de Vladimir
Putin de recuperar parte do território perdido com a implosão da antiga União
Soviética em 1994. Em razão do desaparecimento da URSS, a Federação Russa é a
sua principal herdeira. Acoimado por Barack H. Obama como potência regional, o que mais ambiciona Moscou é recuperar parte do
poder perdido na última década do século vinte. Sendo o principal herdeiro
político da antiga superpotência, Vladimir Putin sonha com reapossar-se de
pelo menos parte da base territorial a que a URSS atingira.
Vencedora
da Alemanha de Hitler, a URSS sofreu descomunais perdas em vítimas humanas e
enormes danos materiais, na sua mortal batalha contra o III Reich. Nessa guerra, a mais mortífera do século XX,
Moscou teve a ajuda determinante dos Estados Unidos, através de vários
programas, de que talvez o mais importante tenha sido o lend-lease, ideado pelo Presidente Franklin Delano Roosevelt
para fortalecer o exército e a marinha soviéticos. A União Soviética teve outra
grande ajuda neste conflito, certamente o mais letal do Século XX. Essa ajuda
se deveu à ignorância militar do cabo Adolf Hitler e a sua crescente
e ruinosa intromissão na escolha dos principais objetivos militares do Alto
Comando da Wehrmacht. Quis o Senhor
da História que no fiel da balança entre dois magnicidas, acabou por levar a
melhor o grande algoz e psicopata Joseph
Stalin, sendo afinal o pior deles, em termos de carrasco da Humanidade,
i.e. Adolf Hitler, derrotado pelo
acúmulo de erros cometidos, para melhor fortuna do mundo que entre dois grandes
males, acabou ficando com o menor.
Agora Vladimir Vladimirovich Putin
se empenha na recuperação do antigo poder da União Soviética. Se por ora ele está bastante longe desse
escopo político, militar e econômico, a sua falta de escrúpulos e a ausência de
respostas mais firmes e determinantes do Ocidente, se não lhe abre a cancela
para restabelecer a base territorial da antiga URSS (isto sem falar na Europa
Oriental, antes acorrentada e dominada pelo Kremlin,
e hoje gozando de inegável liberdade, que tende a crescer para aqueles antigos
países dominados por Moscou que fortaleçam e desenvolvam os seus laços com a
União Europeia). Salta aos olhos que é menos preocupante a situação de países
como a Polônia, integrada com Bruxelas,
do que a de outras pequenas nações (com substanciais minorias russas), como os
países do Báltico.
Tenho
escrito amiúde neste blog sobre a
região do estrangeiro próximo (near
abroad),
que é a peculiar maneira com que o Kremlin se reporta àqueles
países que por sorte madrasta, além de
serem vizinhos da Rússia, tem um peso demográfico e econômico menor. Aliás, o imperialismo de Moscou já se fez
sentir sobre a Geórgia e a Moldova, humilhando a ambos com a
formação de faixas com etnias próximas do Kremlin
e contrárias aos pequenos países em que estão localizadas. Nos tempos de George
W. Bush, a Superpotência aprenderia dos próprios limites, eis que
Moscou fez o que bem entendeu no que toca à chamada Georgia do Sul e a Abkhazia
do Sul, mostrando a Washington o quanto valia o seu poderio para aqueles
anões se ambicionassem contrapor-se ao poder do Kremlin. Esta foi a primeira lição aplicada por Gospodin Putin ao Presidente da
Superpotência, na época George W. Bush.
Oportunamente, me ocupei, outrossim,
de uma contribuição intelectual
do Presidente russo ao seu ingente trabalho de construir as bases da
ressurgência da antiga Superpotência. É importante, nesse contexto, ter-se
presente que nada fazendo, mesmo assim a Rússia é a herdeira natural do
armamento termonuclear da antiga URSS. Parte desse armamento se achava sob a
posse de outras repúblicas soviéticas (eis que na época, não passavam na
verdade de províncias do Kremlin). A
Federação Russa cuidou de manter a posse dessas armas atômicas e tudo leva a
crer que tenha logrado fazer com que as repúblicas menores se desfizessem da
responsabilidade de armazenar tais armas. Sob certos aspectos, não há negar que
a decisão contribuía para diminuir os óbvios perigos da fragmentação desse
controle. No entanto, países do tamanho da Ucrânia, que também repassaram à
Rússia a posse de tais armas, deveriam te-lo feito? Se Kiev tivesse insistido na manutenção do seu controle de tal
armamento que já se achava em seu território, a pergunta que se coloca
é óbvia: Moscou teria procedido da mesma
maneira com que agiu, após a queda do ‘amigo’ Yanukovich ? Terá o então
presidente ucraniano sopesado da importância dessa decisão? Salta aos olhos que
o Kremlin não ousaria tratar Kiev como se fora uma simples
província, a ponto de castigá-la com a invasão da Crimea, isto sem falar da
instigação à rebelião na Ucrânia oriental por agentes adrede escolhidos...
Antes que
trate da parte final desse estudo, cabe sublinhar que Vladimir Putin atribui
grande relevância à recuperação do antigo poder soviético pela Federação Russa.
Para tanto, mandou elaborar doutrina eurasiana, que forneça o alicerce
ideológico para o continuado florescimento, sob o aspecto intelectual e
doutrinário, da presença da Federação Russa no seu chamado espaço vital.
Não se
assuste o leitor com o emprego dessa terminologia. Ele é feito adrede, pois o Kremlin tratou de realizar esforço que
desse embasamento teórico e doutrinário aos supostos alicerces de uma ideologia
que se substituísse à anterior (a marxista-leninista, do tempo da URSS), para emprestar alegadamente
ao novo enfoque intelectual maior respeitabilidade e abrangência.
Nesses
termos, não se pode deixar de sublinhar que a doutrina eurasiana pretende
suceder ao comunismo, hoje perempto para o Senhor de todas as Rússias, embora
não se deva ter ilusões quanto à eventual serventia dos meios no passado
utilizados. Para que se tenha ideia da amplitude dessa doutrina, ela não se faz
de rogada quanto ao emprego das vertentes de direita e de esquerda. Há mesmo um
ideário oriundo do nacional-socialismo que é igualmente havido por útil para
ter seu emprego assegurado.
(a continuar)
( Fontes subsidiárias: The New York Review, The
New York Times )
Nenhum comentário:
Postar um comentário