quinta-feira, 10 de junho de 2010

A Tentativa Ruralista de Esvaziar o Código Florestal

Em ‘O Código Florestal e o Deputado Aldo Rebelo’, de 30 de maio último, este blog comentou o tema em apreço. Na Comissão especial da Câmara criada para tal efeito, a matéria ora se acha em discussão.
O deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP), que despertara atenção na opinião pública pela apresentação de projetos peculiares, como o da proibição da utilização de vocábulos alienígenas em lojas e edifícios, resolveu fechar aliança com a dita frente ruralista. Encarregado da relatoria do anteprojeto de ‘novo’ Código Florestal, o deputado não limita os seus absurdos e falsas concepções científicas ao respectivo relatório, mas pretende, sob diáfano véu, impor visão procusteano-ruralista ao que entende deva ser o instrumento legal.
Como por motivos insondáveis, este deputado na verdade se tornou vetor das mais perniciosas propostas ruralistas, não creio se deva distinguir entre o fautor do relatório e a dita Frente. Dado o peso e o caráter regressivo dos objetivos colimados por tal associação, só tenderia a confundir o leitor buscar distinções e diferenças onde elas não existem.
Na terça-feira, 8 de junho, Aldo Rebelo iniciou a leitura de calhamaço de 274 páginas, que é o seu relatório relativo ao ‘novo’ Código Florestal. Conseguiu ler 52, estando prevista a continuação para os dias seguintes. Já o procedimento parlamentar motivara protestos da oposição, eis que, prenunciando o espírito que deseja presida às discussões, estranha e deslealmente foi dada anterior ciência do texto à situação, enquanto a ele não tiveram acesso os deputados da oposição. Semelha que as hostes ruralistas, dentro de particular concepção da ordenação dos trabalhos, tencionam valer-se do princípio de que conhecimento é poder.
É deveras discutível que o anteprojeto ruralista tenha a ver com conhecimento. Na verdade, deseja ser conduto facilitário para uma ideologia retrógrada. Propor instrumento legal como este maquinado pelo seu representante é não só um acinte, mas um arremedo de lei cuja direção se acha na contramão da história. Quando até desmatadores conhecidos resolvem encenar falsas conversões para tentar banhar-se nos remansos do ambientalismo, no intento de livrar-se da pecha da devastação, confrange que o anteprojeto elaborado seja tão descaradamente obnóxio e pernicioso ao meio ambiente e sobretudo à preservação de um recurso natural de que o Brasil é ainda o maior possessor.
Como lemingues na sua proverbial carreira suicida, esta espécie de ruralismo reflete apenas o imediatismo bronco, que não sabe conviver com a natureza e os recursos que o seu uso sustentável proporciona. Os malefícios da devastação são a recompensa que obtém, movidos pela cega ganância do desmatamento e da queimada. Exemplos disso temos no estado do Pará, em que as madeireiras ditam a lei da devastação e das consequentes mudanças nefastas não só na vegetação, mas no clima e nas epidemias. A malária, nesse sentido, ao se retirar a floresta, que é habitat natural do anopheles. Este mosquito transmissor então se transfere para os núcleos citadinos, com os previsíveis resultados sobre a população indefesa.
A lógica e a racionalidade se me afiguram palavras que a avidez e o imediatismo do ruralista não logram entender ou sequer captar. Com efeito, ele é a um tempo o mensageiro e o paciente da respectiva obra. Se é uma faina simples, como a de abater e devastar, a paisagem desvirtuada e deformada ,em breve, há de mostrar-lhe a própria valia, na vegetação empobrecida, nas terras lixiviadas e nos páramos das savanas.
É realmente melancólico que pela colusão com a situação amorfa e sem princípios – que tem a ver o PT hodierno com aquele de Chico Mendes em termos de ambientalismo? Se vivo fora, há muito teria saído desse atual veículo de poder a qualquer custo – seja possível a essa frente ruralista reaquecer e refogar velhos projetos que persegue na trilha epimeteica da história.

Cotejo da legislação atual com o monstrengo em discussão.

Seguindo as normas de seus guias, o porta-voz do ruralismo tentou ridicularizar o Código Florestal, a lei 4.771, de 1965 (com modificações em 2001). Uma sumária análise mostrará que o ridículo está no anteprojeto, saudado na comissão especial da Câmara pelos cartões vermelhos dos defensores do ambientalismo.
Competência para legislar.
De acordo com a norma vigente, cabe unicamente à União[1] legislar sobre questões ambientais. Partindo do geral, o redator do anteprojeto esdruxulamente atribui competência aos estados para legislar sobre tamanho das reservas legais e áreas de preservação permaente (Apps). A prevalecer tal disposição, teriam cinco anos para fazê-lo. Na prática, o anteprojeto esvazia os percentuais atuais, atribuídos à União. Com efeito, embora os mantenha alegadamente para as áreas preservadas da Amazônia (80%), Cerrado (35%), Pantanal, pampas, caatinga e Mata Atlântica (20%), na realidade torna poético tal poder federal, eis que aloca aos Estados a capacidade de definir o zoneamento nas suas áreas respectivas, com a bondade suplementar de mascará-lo com o acréscimo das APPs. Não há dúvida, portanto, que o deputado do PCdoB dá nesse aspecto (como de resto noutros) o poder às legislaturas estaduais.
Tanto na práxis empírica, quanto na teoria política o redator erra e pesadamente
porque o meio ambiente
é demasiado importante para deixá-lo ao arbítrio dos estados. Quem melhor para assegurar a preservação das áreas ambientais do que a União Federal, porque tais áreas não sóem respeitar as divisões estaduais. E no que concerne a demais argumentos em contrário, a inconstitucional promulgação de código em Santa Catarina é um exemplo eloquente de o quanto se deve evitar a fragmentação da legislação ambiental (se nos ativermos à boa fé e ao interesse geral, é óbvio).
Ainda nesse tópico, no seu insensato (sempre presumindo que o vício redibitório seja de ordem conceitual, q.e.d.) desígnio ruralista, o anteprojeto estipula que os estados poderão legislar sobre o tamanho das reservas legais e apps. Concede-lhes cinco anos para a elaboração do zoneamento.
Anístia. Este instrumento constitucional foi, como se sabe, utilizado demagogica e abusivamente pelo Governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Após ritualmente relevar as passadas multas (por descumprimento da legislação ambiental), por vários anos seguidos, resolveu mascar o último perdão em regra legal, ao determinar em dezembro de 2009 que seria cobrada multa a partir de 2011, para os transgressores da legislação ambiental. Escoimados os disfarces, Lula manteve a anistia, estabelecendo uma multa futura, a ser aplicada a critério do respectivo sucessor, eis que o seu segundo mandato finda a 31 de dezembro de 2010. O povo chama isto de dar barretadas com chapéu alheio.
O cristão novo do ruralismo julga mais oportuno ir além. Estabelece que o desmate até julho de 2008 não será punido.Tampouco haverá multas, para os estados que criarem zoneamentos. Como parece irresistível, quem estiver por acaso reflorestando, pode parar com tal atividade.
Tamanho da reserva legal. Como disposto alhures, atualmente a área de uma propriedade rural que o dono não pode desmatar varia entre 20 e 80%, conforme a região.
Já consoante o anteprojeto, os pequenos proprietários (até quatro módulos fiscais) ficarão isentos dessa norma. A área de preservação permanente poderá ser incorporada à reserva (como se vê, o Sr. Aldo Rebelo se empenha, no atacado e no varejo, em reduzir o escopo e portanto o benefício da norma ambiental).
Áreas de Preservação Permanente. De acordo com a lei nr. 4.771 (Código Florestal), a faixa de proteção dos rios (matas ciliares) varia de trinta a quinhentos metros. As APPs incluem também áreas de várzea e topos de morro.
Por sua vez, o anteprojeto reduz a margem mínima para quinze metros (!), com a suposta ‘bondade’adicional de ulterior redução em 50% caso estados considerem necessária tal medida.
Como definir essa modificação além de demagógica e irresponsável ? Deixo os epítetos por conta do leitor. Tenham presente que a colenda Assembleia catarinense reduziu a APP para cinco metros, o que equivale ao plantio solitário de uma árvore. Dada a experiência desse estado com catástrofes naturais de origem ambiental, temos aí mais um argumento para não delegar às assembleias estaduais tal poder.
Atividades em APPs. Tais atividades são atualmente permitidas se forem de interesse público. As áreas em tela devem ser recuperadas mesmo em áreas desmatadas, com vistas a evitar a erosão e manter os recursos hídricos.
O redator ruralista do anteprojeto extrapola na sua generosidade feita em detrimento do bom senso e do equilíbrio ambiental. Com efeito, se atreve a determinar que ‘se o propositor da atividade na área argumentar que não há outra alternativa, poderá ocupar a área.’ Em tal disposição, portanto, se consagra a anomia, eis que é o próprio proprietário que pode agir discricionariamente como se não tivesse compromisso com o meio ambiente, e sim com a míope hiper-utilização da respectiva fazenda.
Amazônia. Este é o único capítulo em que o redator do anteprojeto não ousa introduzir o respectivo facilitário. Talvez julgue que o Governo Lula com as suas leis (v.g., vide MP da Grilagem e repetidas suspensões de multas por desmatamento) já fez por ora bastante no que tange à respectiva orientação geral da emenda proposta.
O Código atual
determina que a preservação da reserva legal deva ser de 80%, podendo, no entanto, ser reduzida para 50%, se se tratar de recuperação de área desmatada, quando a lei estadual o determinar.
Comentário.
Como refere o editor de ciência da Folha, Claudio Angelo, há um peculiar nacionalismo no relatório do Deputado Aldo Rebelo, que o dedica “aos agricultores brasileiros”. Segundo tal interpretação, a proteção ambiental é uma invenção dos “estrangeiros” para condenar o Terceiro Mundo à pobreza.
No entender de Ângelo, “o nacionalismo do deputado do PC do B era a base intelectual que faltava à bancada ruralista para emplacar a ‘flexibilização’ do Código Florestal. Bons de pressão, mas ruins de ideologia, os ruralistas tentam há quase uma década mudar a lei ambiental”.
Como o demonstram as pretensiosas citações supostamente científicas de Aldo Rebelo, em que o erro crasso e a confusão são a norma, concordo plenamente com o conselho de Claudio Angelo para esse deputado que escreve amazonicamente – na expressão de antigo professor – para compor tal pernicioso calhamaço às vésperas das eleições: “além de uma consultora do agronegócio, o deputado bem poderia ter contratado um assessor científico.”
Como dizia o velho censor Catão, ao cabo de cada discurso: Delenda est Carthago. Aqui, na outrora feliz terra de Pindorama, deveríamos assinalar: A reforma ruralista ao Código Florestal deve ser rejeitada, por estulta, prejudicial, e sobretudo por agredir a razão, ao tempo e à ciência.


( Fontes: Folha de S. Paulo e O Globo )

[1] Santa Catarina mal avisadamente intenta quebrar essa norma. O seu código ambiental está sendo questionado no Supremo Tribunal Federal. Augurar-se-ía maior presteza de nossa Suprema Corte, haja vista os danos que a assembleia legislativa catarinense inflinge ao respectivo estado. As avalanches e desastres naturais que a assolam deveriam induzir seus representantes a menos demagogia e ao respeito das normas ambientais, o que redunda no interesse dos próprios habitantes e a fortiori aqueles rurais.

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