domingo, 13 de junho de 2010

12 de Junho, Um Ano Depois

O doze de junho de 2009 foi a data das eleições presidenciais no Irã. Como a população iraniana aprendeu nessa ocasião, na teocracia dos ayatollahs tampouco se há de respeitar o ditame da maioria dos eleitores.
Até aquela data, se a democracia era característica pouco encontradiça no regime clerical do Líder Supremo Ayatollah Ali Khamenei, o veredito das urnas havia sido sempre respeitado. Houve mesmo uma tentativa, sob o presidente Mohamed Khatami, de recuperar algumas práticas democráticas, embora o estamento clerical-militar a tivesse obstaculizado.
Selecionando a Mahmoud Ahmadinejad para a presidência, o sucessor de Khomeini não queria correr riscos. Quando este concorreu à reeleição, Ali Khamenei não trepidou em cortar um dos derradeiros laços com a democracia. Não obstante a gritante maioria obtida pelos candidatos oposicionistas, tanto por Mir Hossein Moussavi, quanto por Mehdi Karroubi, esse fato não representou qualquer empecilho para que o regime encenasse uma fraude colossal.
Confirmando a famosa máxima de Lord Acton – o poder corrompe, e o poder absoluto o faz totalmente – Ali Khamenei e seus asseclas sequer se preocuparam com as aparências. Em um país de contagem manual dos sufrágios, não se pejou em declarar a vitória de seu pupilo Ahmadinejad em uma questão de horas. A fraude que rivalizou em atrevimento com as da Bielo-Rússia e as dos países do Magreb chegou a computar como vitorioso Ahmadinejad nos distritos natais dos dois principais candidatos oposicionistas.
Foi esta mesma votação que Nosso Guia com o seu próprio alheamento de qualquer preocupação com o conhecimento crítico, além da usual pobre metáfora futebolística, acrescentou uma mendaz observação: que as corajosas manifestações em Teerã e outros grandes centros naquele país não passavam de “ choro de perdedores”.
Na verdade, a situação do povo iraniano é demasiado triste para que me ocupe, neste artigo, dos laços espúrios que por idiossincrasias dos assessores políticos do Presidente Lula se estabeleceram entre o Brasil e a ditadura dos ayatollahs.
Para os leitores do blog procurei acompanhar a evolução dos acontecimentos na antiga Pérsia. A pergunta que se coloca é como se acha aquele movimento espontâneo e que já nos mostrou que há dois Irãs. O do estamento dominante, formado pela aliança entre os ayatollahs e clérigos ligados a Khamenei e os Guardas Revolucionários. Esses últimos tem empolgado boa parte do poder, inclusive na parte econômica e no esforço para a construção do artefato nuclear.
O embrionário movimento popular iraniano confirma a norma que preside às revoluções. Tanto naqueles movimentos que detêm parcela do poder, quanto naqueles outros que confrontam um regime autocrático, a radicalização é a norma. Ela se observa tanto no primeiro exemplo (revolução francesa), quanto no segundo (revolução russa).
A situação no Irã – que obviamente se insere no segundo exemplo – continua a evoluir, com a surda oposição da maioria da elite pensante e de largos extratos não só de estudantes e profissionais liberais, mas também de setores mais humildes, insatisfeitos com as condições prevalentes. Dessarte, a oposição de início se norteou por respeitar os chamados princípios da revolução de Khomeini. Nesse capítulo, se inserem as manifestações lideradas pelo Movimento Verde, de Moussavi e as do clérigo Karroubi.
Dada a brutalidade da reação governamental, evidenciada pelas arbitrariedades e violências das forças ditas da ordem, seja formal (polícia e destacamentos de choque), seja informal (a milícia basiji), a oposição popular se transforma em contestação ao regime. No caso de Moussavi, Karroubi, Khatami e de outros personagens com trânsito no esquema vigente ainda se nota a preocupação de não romper com as diretivas do Ayatolah Khomeini, agora um outro segmento mais dinâmico abandona as concessões dos moderados para adotar palavras de ordem como ‘morte ao Tirano’ (i.e., Khamenei, eis que Ahmadinejad não passa de um apparatchik [1]de alta hierarquia), assim como empunha bandeiras suprimindo qualquer menção ao onipotente Alá – com que esse setor de vanguarda marca a ruptura com a subordinação aos mulás do clero xiita, e passa a contestar frontalmente o regime.
Se o movimento democrático no Irã – nas suas duas formas, a moderada e a radical – foi jogado seja para os calabouços do regime imperante, ou para a morte (quer através do desaparecimento, quer através de tribunais que lembram os dos anos trinta do estalinismo), seja nos subterrâneos das catacumbas revolucionárias, onde se reforça a negação do poder formal, corrupto e tirânico, e se prepara a reação que como varreu a monarquia dos Pahlevis acabará por desvencilhar-se desta carga cada vez mais opressiva e distanciada da realidade das necessidades e reivindicações de uma sociedade com anseios libertários e alto nível educacional.
Todas as ditaduras se parecem, mas algumas são na aparência mais rijas e mais potentes do que outras. Todas, no entanto, brigam com um conceito básico, que é o do uso do fuzil. Um governo, uma classe, uma corporação podem intimidar e matar com esse instrumento (e, é claro, seus sucedâneos tecnologicamente mais avançados). Contudo, a repressão cega, brutal e ilimitada encontra a própria nêmesis na sua incapacidade de sentar-se sobre o fuzil, vale dizer conviver com a realidade por um período mais largo. E será esta a antinomia que decretará, mais cedo, ou mais tarde, a sua inexorável queda.
O regime do ayatollah Ali Khamenei – e de seu ordenança, o subpresidente Mahmoud Ahmadinejad – tem sido deveras competente na repressão sistemática de revoltosos reais e presumidos, deixando um rastro acabrunhante de mortes – quem não se recorda da jovem e bela mártir Neda, vitimada por um covarde projétil quando pacificamente participava de uma demonstração em favor de um dos candidatos esbulhados pelo tirano ? A repressão arremeda a revolução ao afundar-se cada vez mais na violência extremada. Chega até a ‘saudar’ visitas que se acham ilustres, como na malfadada missão de Lula a Teerã com alguns inconvenientes enforcamentos de ‘terroristas’ e ‘contestadores do regime’.
Quando uma mulher do povo – que teria todos os títulos para considerar-se da camada de apoio ao atual regime – afirma a um reporter que Khamenei e Ahmadinejad são piores do que o antigo Xá, não será uma vã esperança a de entrever para mais cedo do que muitos antecipam que todo essa magnífica construção da cega repressão clérico-militar venha abaixo com o fragor e o júbilo de oi polloi[2] . Será a culminação dos incessantes gritos que partem hoje, do terraço dos edifícios, sob o manto benévolo da noite, a clamaram a plenos pulmões pela breve e ansiada morte do Ditador.

[1] quadro burocrático (no regime soviético).
[2] Os Muitos (grego clássico)

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