sábado, 12 de junho de 2010

A Lei da Ficha Limpa

A lei da Ficha Limpa ainda não tem assegurada a sua plena vigência, pois depende, por ora, de decisão do plenário do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Trata-se de determinar se deva valer somente para aqueles condenados depois do dia quatro de junho, data da sanção da lei pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ou se abrange a todos os condenados por órgãos colegiados do Judiciário, pelos crimes catalogados nesta legislação.
A suposta dúvida se relaciona com a linguagem introduzida pelo Senador Demóstenes Torres (DEM-GO), quando de sua apreciação no Senado Federal, que substituíu a frase “que tenham sido condenados”, por “que forem condenados”.
Na verdade, no entender de gramáticos e linguistas essa dúvida não tem cabimento, como se depreende de númerosos empregos desse tempo verbal. Basta recordar a famosa frase do Marquês de Osório: “aqueles que forem brasileiros, que me sigam!” Na expressão em apreço se assinala inequivocamente o caráter condicional desse tempo do verbo ser, e, por conseguinte, não é limitativo em absoluto quanto à validade temporal.
A tal propósito, as manifestações dos presidentes dos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) do Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul, defendendo a ampla aplicação da Lei da Ficha Limpa, constituem desde já uma nova alvissareira, posto que a norma será estabelecida pelo Superior Tribunal Eleitoral, provavelmente no decurso da semana entrante, quando se concluirá a análise da nova lei.
Há outro aspecto da lei da Ficha Limpa que acredito de toda oportunidade aprofundar neste blog. As leis de iniciativa popular constituem uma das mais acertadas inovações da Constituição de 5 de outubro de 1988, oportunamente cognominada pelo Presidente da Constituinte, Ulysses Guimarães, como a ‘Constituição Cidadã’.
Se bem que a aprovação da legislação em tela represente o benefício principal, é mais do que apropriado não esquecermos a tramitação no Congresso da P.L.P. 518/09, projeto elaborado pelo Movimento de Combate contra a Corrupção Eleitoral (MCCE). Tal tramitação evidencia dois fatos singulares e primaciais: (i) a resistência dos parlamentares à hipótese de uma regulamentação eleitoral do gênero proposto e (ii) a relevância e o caráter determinante do maciço apoio do povo brasileiro, com a vantagem acrescida da superveniência do pleito de outubro p.f.
Quanto ao aspecto (i), não se carece de poderes divinatórios para afirmar-se com segurança que hoje não existiria nenhuma legislação disciplinando essa importante lacuna, se o MCCE não houvesse apresentado a proposição ao Deputado Michel Temer, Presidente da Câmara, em setembro último. As próprias restrições do Deputado ao documento - que comissão altamente representativa do MCCE lhe fazia a tradição[1] - já constituíam indicação bastante da indisposição de Suas Excelências com tal iniciativa. A PLP 518/09 penou no olvido preterintencional do colégio de líderes, que, repetidas vezes, lhe denegou a requerida urgência. Nesse aspecto, vale menção de justiça à metanóia [2]do Presidente Temer que acabou por convencer seus colegas que não se poderia engavetar a proposição indefinidamente. Não cabe aqui aludir a todas as demais resistências encontradas pela PLP 518. Basta dizer que não foram poucas, nem seus opositores deixaram de apelar para todos os recursos a fim de pelo menos esvaziar o importante instituto legal. A única modificação sensível aportada foi a substituição da condenação por juiz ordinário pela de um colegiado de juízes (i.e., passagem ao segundo nível judicial).
No que concerne ao quesito (ii), a sabedoria do apelo à expressão direta da vontade popular fica amplamente corroborada pela força do movimento inercial catalisada pela PLP 518, que levou de roldão a todos os arreganhos e intentos de postergação ou deturpação. Disso constituíu a derradeira prova as tolas e insensíveis declarações do lider do governo no Senado, Romero Jucá, que se atreveu a dizer que o projeto da ficha-limpa não era prioridade do governo e sim da sociedade. Por ignorância ou soberbia, esqueceu-se – como da tribuna lhe relembrou o Senador Pedro Simon – que o governo não deve ter prioridades que não sejam aquelas acalentadas pela sociedade. Ainda ensaiaria Jucá outras estultícias menores, como a eventual inserção de emendas e quejandos, que a própria dinâmica do processo condenaria à mais grave das negações, a do silêncio reservado às irrelevâncias.
Agora, Suas Excelências – com as exíguas exceções de regra – fazem cara boa para amarga medicação. A Lei da Ficha Limpa não é panaceia para os males, os escândalos, e as vergonhas de nossas câmaras legislativas. Constitui, no entanto, estentórico grito de ‘presente !’ da sociedade enojada com as ilicitudes e a impunidade de muitos. Ela é, em realidade, um começo de bom augúrio, depois da exposição de tantas insanas mostras de privilégio e despejado corporativismo.
É importante, todavia, não esquecer que a entrada em vigor desta lei não resolverá todos os problemas de Pindorama. Representa, é necessário repeti-lo, um bom e alvissareiro início de processo de recuperação, mas sempre será um começo e nada mais.

( Fonte: O Globo )
[1] entrega.
[2] reconversão, arrependimento.

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