quarta-feira, 2 de junho de 2010

CIDADE NUA III

Doce Ilusão (15)

Ainda fazia calor no Rio. Com o ar ligado, sentado na cama, os braços cruzados, o queixo quase tocando o peito, se abandonou a um longo repensamento da relação com Gardênia. Mais meditasse, mais o tempo passasse, não encontrava motivos de qualquer esperança em todas as imagens e palavras da passagem da jovem por sua vida.
Salvo o telefonema de há pouco, tudo acontecera na tarde e na noite de um só dia. Diante de mais um percalço, de que outro indício precisava para colher a certeza de que ela não gostava dele ?
Nessas relações truncadas, em que o seu sentimento não era correspondido, por mais que insistisse, só se chocaria com a resistência dela. E o processo da rejeição tenderia a crescer, a tornar-se cada vez mais brutal e explícito. A sua recusa de entender um não iria transformá-lo em figura patética, quem sabe num verdadeiro personagem de Nelson Rodrigues.
Tudo isso ele compreendia, ali, em meio à escuridão. Sentia raiva por se prestar a tal papel, sentia raiva porque sofria, e ao mesmo tempo tinha medo que inventasse amanhã algum pretexto para tentar outra vez o impossível.
*
Na manhã de sábado, depois da longa noite mal dormida, ele afinal se decidiu. Iria ao shopping da barra e encontraria jeito de espiá-la à distância, sem que ela se apercebesse. Sabia que corria um duplo risco: ou ser descoberto, ou não apurar nada.
Se pretendia, contudo, inteirar-se da razão de suas esquivanças, tinha de pôr-se em campo. Tampouco ignora que o motivo de sua atitude pode não ser visível a olho nu, como no caso de uma antipatia gratuita.
Está consciente de todas essas possibilidades. No entanto, não será enterrando a cabeça na cama que terá condição de confrontar-se com a verdade.
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