Com o passar do tempo, a verdade vai
aparecendo, como sói ocorrer. No entanto, essa tarda presença grita por Justiça,
e se torna um cruel deboche quando o favorecido se atreve a atacar quem, por
estranhos, quiçá insondáveis motivos, nada fez para impedir que o mal lograsse
o próprio inconfessável propósito.
Vladimir V. Putin pode ser um político
desonesto - como o livro da professora universitária Karen Dawisha
o mostra com profusão de dados e indicações. Outra corajosa americana - Masha
Gessen - escreveu obra sobre o presidente russo "O Homem sem Face"
(que descreve o surgimento dessa figura em Leningrado).
Assinale-se que essas duas mulheres - a segunda vive em New York e em Moscou -
traçam retrato sem retoques desse antigo agente do KGB, que por operação realizada por expoentes do círculo do
Presidente Boris Ieltsin, já então gravemente enfermo, fora cooptado para
tornar-se espécie de salvador in extremis
da clique do então presidente russo. Como os fatos ulteriores o demonstrariam
amplamente, Vladimir Vladimirovich Putin era realmente um político capaz - na
verdade, capaz de tudo - pois ele açambarcaria o esquema de Boris Ieltsin,
livrando-se, de resto, do oligarca Boris Berezovsky, que o
trouxera para encarregar-se da operação salvação do grupo do entorno de
Ieltsin.
Mas não é decerto o escopo deste
artigo descrever a ascensão de Putin, e dos erros que cometeram aqueles que
acreditaram - de resto, como a História tende a demonstrar com repetitiva
ênfase em um sem número de casos - na possibilidade de manipular esse natural
de Leningrado (hoje de novo São Petersburgo).
O intúito é bem diverso. Fala-se
muito no decline (declínio) dos
Estados Unidos, e George Packer é um
dos escritores que tem dado a atenção devida ao tema. Existem diversos sintomas desse processo, com
partes do interior americano esvaziadas, e tudo seria decorrência da estúpida
empresa de George W. Bush, com seus bilhões de US dollars torrados na guerra
contra Iraque e Saddam Hussein. Além de não descobrir o esconderijo das WMD
(armas de destruição em massa), o que os artífices dessa expedição insana
lograram foi dar início a processo que já acometera outras grandes potências no
passado, como o Reich alemão.
A menção ao eventual declínio
estadunidense é introduzida com o fim de melhor entender a postura do
presidente Barack H. Obama, e a sua alegada ojeriza a aventuras militares,
conquanto haja permanecido por toda a sua presidência (2008 - 2016) a expedição
no Afeganistão, além de outras operações militares de menor alcance.
O que é decerto difícil de compreender
foi o estranho modo com que o 44º presidente dos Estados Unidos reagiu às
diversas indicações colhidas pelos seus serviços de segurança a princípio, da
intenção de Vladimir Putin de intervir de alguma forma no processo eleitoral
americano, ao ensejo da eleição presidencial de 2016.
O rancor de Putin contra Hillary Clinton
surgira há cinco anos atrás a propósito dos protestos anti-Kremlin na praça
Bolotnaya. Segundo ele, a então Secretária de Estado teria dado o sinal para tais
protestos. Esse antigo rancor contra a suposta intervenção da Chefe do
Departamento de Estado alimentaria a raiva do presidente russo. A própria
Hillary atribuiria a sua ordem de intervir na campanha presidencial americana
ao "old beef" a que Putin ainda nutriria.
Assinale-se que Putin detesta Obama,
que aplicara sanções econômicas e financeiras a sua curriola , depois da
anexação da Criméia e a invasão da Ucrânia oriental. Para a tevê estatal russa,
q ue gospodin
Prezident domina por completo, Obama é descrito como "fraco",
não-civilizado e um "eunuco". Para Putin, contudo, Hillary seria pior
- a encarnação do traço liberal-intervencionista na política externa americana,
mais "falcão" do que o próprio Obama, e um obstáculo para terminar as
sanções e ao reestabelecimento da influência geopolítica russa.
Ao mesmo tempo, Putin habilmente
lisongeava Trump, que por sua vez era extremamente positivo nas suas asserções
acerca da força de Putin e sua eficácia como líder. Em 2013, antes de visitar
Moscou para o desfile de Miss Universo,
Trump se perguntou, através do twitter,
se ele "seria recebido por Putin" e "então se ele se tornaria o meu novo melhor amigo?" Na
campanha presidencial, Trump gostava de repetir que Putin era um líder
superior, que havia tornado a Administração Obama um "motivo de
risadas".
Para quem estivesse interessado em
medidas concretas, a era digital criara oportunidades que eram muito mais
tentadoras do que, por exemplo, o que estaria disponível nos tempos de
Andropov. Nesse sentido, tanto o Comitê Nacional Democrata quanto o Republicano
ofereciam o que os expertos cibernéticos chamam de grande "superfície de
ataque". No entanto, apesar de estarem conectados à política no seu mais
alto nível, não dispunham das defesas rotineiramente oferecidas a instituições
estatais que lidem com temas de alta sensitividade.
Nesse sentido, John Podesta, que
chefiava a campanha de Hillary e era antigo chefe do gabinete de Bill Clinton,
dispunha de muito conhecimento acerca da frágil natureza das comunicações
modernas. Como conselheiro sênior da Casa Branca de Obama, conhecia bem os
requisitos da política digital. Mesmo com toda essa bagagem, não cuidou de
utilizar o instrumento de defesa mais elementar, a verificação de dois graus,
para a sua conta de e-mail.
O próprio Chefe reconhece que tanto a equipe do
Comitê de Hillary, quanto Podesta esbajavam confiança no que escreviam ou
clicavam. Recebeu até um e-mail de phishing
(que é fraudulento), originário supostamente do "time do
Gmail", que lhe recomendava "mudar a sua senha imediatamente". O
nível técnico era tão baixo que o encarregado assegurou "tratar-se de e-mail legítimo".
A situação americana em termos políticos
estava aberta para a chamada dezinformatsiya,
que é informação falsa que visa a desacreditar a versão oficial dos
eventos. Como os americanos, de acordo com o Centro Pew de pesquisa se achavam
mais divididos em termos ideológicos num espaço de duas décadas, essa atmosfera
favorecia a criação de teorias de
conspiração: lugar de nascimento de Obama - supostamente o Quênia; origens da
mudança climática (fraude chinesa). É de notar-se que Trump, ao lançar a sua
identidade política, promovia essas teorias.
Um general da antiga KGB, Oleg
Kalugin, que fugiu em 1995 para os
Estados Unidos, acentua a circunstância de que as pessoas em sociedade livre
têm as suas próprias opiniões. Segundo ele, é disso que as agências de
inteligência procuram tirar vantagem. Tal
estratégia é mais vantajosa para a Rússia, que hoje é muito mais fraca do que a
antiga URSS, para entrar em luta geopolítica com uma entidade muito mais forte.
Em princípios de janeiro, duas
semanas antes da posse, James Clapper, o diretor da Informação (Intelligence) nacional, em relatório
ostensivo, afirmou que Putin havia ordenado campanha de informação para
prejudicar as perspectivas de Hillary ser eleita, fortalecer Donald Trump e "enfraquecer a fé pública no processo
democrático americano"
Os críticos desse relatório
aludiram aos erros das agências de inteligência nos meses que precederam a
guerra contra o Iraque, e endossaram avaliações errôneas sobre armas de
destruição em massa. Nessa época, no entanto, havia muitas dúvidas sobre o grau
de progresso do Iraque em termos de WMD. Tal não ocorreu agora, em que dezessete agências de inteligência
concordaram em que a Rússia era responsável pelo hacking.
James Clapper,
no seu testemunho para o Senado, descreveu um esforço russo sem precedente para
interferir no processo eleitoral americano. Além do hacking de e-mails de
Democratas, a sua divulgação do conteudo furtado através de WikiLeaks, e
através da manipulação da mídia social para espalhar notícias falsas e
mensagens em favor de Trump.
Trump tentou apresentar as
críticas ao hacking como "uma
caça às feiticeiras". Por outro lado, Yevgenia Albats, autora do livro
"Um Estado dentro do Estado", que é a respeito da KGB, disse que
Putin provavelmente não acreditava na possibilidade de alterar os resultados da
eleição, mas por causa de sua antipatia contra Obama e Hillary, ele fez o que
pôde para ajudar a causa de Trump e minar a confiança americana no seu sistema
político. Na respectiva intervenção, ele queria que ela reforçasse o seu poder
de imiscuir-se nos assuntos americanos. Queria mostrar que, apesar de tudo, os
russos podiam entrar na sua casa e fazer o que bem quisessem."
A Incrível
Cautela de Obama
No
que pode ser interpretado como displicência da Administração Obama, Hillary só
veio a saber da operação de hacking
no começo do verão - nove meses depois que o F.B.I. contactasse o Comitê
Nacional do Partido Democrata acerca da intrusão, e desde logo se mostrou relutante,
alegando que não queria aparecer como agindo de forma muito forte (sic), pois
temia aparecer como muito engajado.
A série das fraquezas do círculo
de Obama e do próprio Presidente começa aí. Na hora em que a candidata do
Partido Democrata sofria um inaudito ataque do Presidente russo, nada foi feito
de forma pública e ostensiva, como eram as afrontas de Putin.
Aparecia por primeira vez uma
atitude dúbia, fraca, que só pode assemelhar-se àquela do avestruz que enterra
a cabeça na areia para fingir que não é com ele. Compreende-se, por conseguinte
a amargura e a raiva do círculo da candidata presidencial.
Um outro presidente - segundo um
assessor sênior de Hillary - teria ido
para o gabinete oval e dito: 'Estou falando para vocês nesta noite para dizer
que os Estados Unidos está sendo atacados. O Governo Russo no seu mais alto
nível tenta influenciar o nosso bem mais precioso, nossa democracia, e eu não
vou deixar isso acontecer.' Segundo tal
cenário, uma grande maioria de americanos teria assistido e tomado ciência. De
acordo com minha opinião (a do assessor de Hillary) não temos o direito de
colocar a culpa do resultado dessa eleição nos pés de ninguém, mas de certa
forma gera perplexidade e é mesmo dificil de entender que não tenha soado o
alarme máximo na Casa Branca.'
O jogo de empurra dos
assessores presidenciais mais próximos transmite claro desconforto, eis que
fica a impressão de que o Presidente Obama não teve a coragem para contrapor-se
de forma ostensiva àquela desfaçatez de
Putin, que passara para a afronta pública aos Estados Unidos e seu
processo político.
Assim, parece chocha a
advertência que Obama fez a Putin, em cimeira do G-20,
na China. Para Putin, o calejado agente do KGB, que Obama lhe tenha dito
"acabe com isso", e "deixe de se intrometer com a eleição em
novembro", senão haverá "sérias consequências". É difícil saber se isso é timidez, que
prefere uma ameaça cara a cara, mas sempre pessoal, do que a responder nos
mesmos termos públicos que Vladimir Putin utilizara.
O caráter ôco das respostas de Obama
continuaria depois de Beijing.
Aumentando as evidências da intromissão russa, sob as ordens de
Putin, voltou-se a estudar uma retorsão
séria (informações negativas sobre
autoridades russas, inclusive acerca de suas contas bancárias, ou operação
cibernética que visasse Moscou). Lá estava, no entanto, o Secretário de Estado
John Kerry que ponderou que tais planos poderiam sabotar os esforços
diplomáticos para lograr que a Rússia cooperasse com o Ocidente na questão da
Síria - tudo isso falharia a seu tempo.
Causas da Vitória de Trump
Decerto há outras causas para a derrota de Hillary Clinton. Como se fora uma
orquestração inimiga, o Diretor do F.B.I., primo
com a sua postura agressiva, quando na primeira apresentação perante a Câmara
de Representantes, secondo, com a
observação grosseira da alegada desordem nos papéis do tal canal privado do computador de
Hillary, terzo com o inesperado e
ominoso anúncio de possíveis novas revelações vindas de outro computador, a do
marido separado da Secretária de Hillary, Huma Abedin, feito - estranho acaso!
- justamente na data da votação antecipada.
Quando a expectativa de que alguma
revelação surgiria não se confirmou, o
jogo irresponsável de Mr James Comey já tinha produzido os seus resultados. Influíu, pesadamente, no período de votação
antecipada, e ao fim de contas, nada havia contra a pobre Hillary.
Sem ser supersticioso, quem não
pode duvidar que a deusa Fortuna tudo dispusera para reduzir artificialmente os
votos para Hillary, seja na ousada, atrevida mesma intervenção da Rússia por um
arrogante Putin, seja no estranhíssimo vedetismo do diretor do FBI, James
Comey, máxime no anúncio estouvado de revelações no computador do ex-marido de
H.Abedin, revelações que bastaram para influenciar contrariamente na votação
antecipada (todas as infrações de Comey ficaram impunes, apesar de irem contra
as regras do Departamento de Justiça, a que está subordinado o FBI), e por fim
surge a figura ambígua de Barack Obama, que cuidaria de tornar chochas todas as
questões que um pouco de energia e sobretudo de empenho certamente trariam mais
firmeza e menos timidez para auxiliar a sua leal Secretária de Estado, que
esperara talvez um dia obtivesse do cometa Obama que surgira em 2008 para
negar-lhe a presidência, mostrasse em 2016 um pouco de esprit de corps, retribuindo com um mínimo de empenho para
contrabalançar tantos imponderáveis que favoreceram o incrível candidato de
Vladimir Putin, que hoje mostra o avesso de o que seria a administração
de Hillary Clinton.
( Fontes: Karen Dawisha, Masha
Gessen; The New Yorker (Evan Osnos, David Remnick e Joshua Yaffa); Oswald
Spengler - Der Untergand des Abendlandes )