domingo, 29 de maio de 2016

Lembranças do meu tio Adolpho (II)

                              


         Tio Adolpho, se fora presença episódica na vida do menino Mauro,  depois crescera nas minhas idas, acompanhando a família, à Frei Caneca - que abrange duas fases distintas - e mais tarde em passeios de lancha,  na baía de Guanabara.
           O tecido da lembrança é decerto caprichoso, com lacunas que no caso são mais decorrência das sinuosas, solertes e subreptícias ciladas do deus Cronos, que brinca, entre mofino e malfazejo, com a fugaz e frágil memória dos humanos.
           Eu, menino órfão - de quem o destino levara tão cedo a presença do pai e a quem a psicanálise diria depois não só dá segurança, mas certeza e solidez, além do vulto grande presente na casa em que vives, no meio que frequentas, nas atenções que vicariamente te são prodigadas - e de cujo peso e indubitável relevância só saberias serodiamente pela assertiva de voz prematuramente cortada do teu convívio, de quanto se depende da solitária figura paterna, por ser a única que cabalmente te confirma na sorte, na ambição e na dúvida, que é, sobretudo, por importuna que te irrompa, companheira inquietante, molesta e tormentosa.
            Com ela não há lidar, se o destino indiferente, sem qualquer sombra de pré-aviso, te arranca da tua tenra, tentativa consciência in-fieri, não só a figura  - que para a criança-infante é mais do que presença protetora e evolvente, mas também mítico, instintivo repositório de carinho, apoio e fortaleza, como o sentira no átimo em que se perdera na multidão anônima da rua central e atravessara por breves, lancinantes segundos de funda angústia e súbito abandono, a temporária perda da mão rija e carinhosa que lhe viria não tão rápido quanto desejara, no abraço forte do pai que para seu alívio tornara a ser presente, de pronto apagando lágrimas de inominada ansiedade - que a criança que deixou de ser de colo sente mas não sabe exprimir.
               Entrei sozinho na casa avoenga da Fernandes Vieira, 93, palco de tantos jogos, travessuras e brincadeiras, e de incontáveis encontros com os tios e a minha prima Cris, que me seguia em anos, em mais desenvoltura, e igual companheirismo.
               Vinha de longe - e o que sói nessas horas acontecer que o futuro não explica - iria prefigurar-se diante da criança indecisa que sem saber ao certo já sentia, e que avançava pelo chão pedregoso da alameda do jardim do avô Romualdo estranhamente sozinha, sem adulto a acompanhá-la. Mas, lesto subiu os poucos  pétreos degraus da entrada externa.
                     Pelo acúmulo de pessoas - e não discerniu ninguém que conhecesse - adentrou o hall interno, empurrando a pesada porta da mansão.
                     Em meio à gente estranha que ali se reunira, separado da sala de entrada por painel divisório de madeira escura e trabalhada, sem que soubesse por que o seu olhar se voltara à esquerda, por trás da sala de visitas - que, consoante o costume antigo, tão raro se abria para pessoas de cerimônia  e a tantos mais que nunca antes vira.
                     Sem que se desse conta, o menino de seis anos  afasta o olhar da aglomeração ao redor, e o afunda, sem saber bem porquê, no   estranhíssimo espetáculo, que se aprontara na residência de vô Romualdo e vó Lucinda, naquela sala toda envidraçada, dita de visitas.
                      Os olhos de crianças pairam ignaros no que lá existe. Sobre estrado de madeira,  um caixão cerrado. Mais do que o féretro, o espanta a quantidade de flores que sobre ele se estendem. O branco dos lírios e o verde da amontoada folhagem mal deixam entrever o esquife mortuário.
                       Deveras, excluída a imagem que o agride de forma que não entende a princípio, mas já com a suspeita, que confirma os gritos de sua mãe no avião, com as passagens arranjadas quase por milagre naqueles anos de guerra na Europa, e tendo de aguentar os vôos lotados e lentos, malgrado os quatro barulhentos motores à hélice.
                        Até então não sabia - ou relutava em saber - da razão dos gritos de mamãe, que, nas presas do desespero, queria sem querer que o tal avião caísse.
                         A partir do instante, em que me deparo com aquela estranha armação,  principio a intuir de o que se trata. Em quarto anexo está minha mãe, entregue ao sofrimento da brutal e final separação de um casal que com meus olhos infantis sempre vira feliz, risonho e brincalhão .            
                          Era junho de 1944. Depois, nos perguntaríamos se não teria sido melhor que o tenente do CPOR José Raphael de Azeredo houvesse partido com a FEB para a Europa.  Até o vira de longe, na casa paterna, com o uniforme de tenente.
                          Seria apenas a visão de um pai que me faltaria em breve para sempre.



 ( Fonte: Bernardim Ribeiro )

Um comentário:

Mauro disse...

Olá Pai, que ótima ideia iniciar uma série com suas lembranças do Adolpho. Pelo pouco que conheci, era uma figura bem folclórica. Contudo, o principal é que são vivências que marcaram a sua vida, mas que eu não conhecia, já que as conversas do dia a dia raramente as veem surgir. Seguirei a série com muito interesse, como as anteriores. Abraço, Mauro