segunda-feira, 2 de maio de 2016

A 'Democracia Chinesa' (II)

                                

         A liberdade de pensamento, assim como a política, tornou-se uma ficção.  Se no passado ambas tiveram muitas restrições, o influxo maoista trazido por Xi Jinping veio colocar toda a questão em outro nível. Tornou-se tópica e, por conseguinte, questionável a liberdade do reporter, do comentarista e do orgão de imprensa. A sutileza, também nesse ponto, não é o forte da nova ordem.
          O máximo líder tratou logo de visitar a agência Nova China de notícias, o Diário do Povo, e Tevê Central da China (CCTV). E para não deixar qualquer dúvida sobre o controle pelo PCC da mídia afirmou: "Toda a mídia de notícias (o que inclui todos os maiores órgãos atuantes no país) deve trabalhar para expressar-se de acordo com a vontade do Partido e as suas propostas, assim como proteger a autoridade e unidade do PCC".
           Nessa mesma ocasião, ele falava diante de faixa que dizia "o nome de família da CCTV é o Partido". Nesse sentido, encareceu ao pessoal da mídia que "aumente a própria conscientização em alinhar a própria ideologia, pensamento político e ações aos do Comitê Central do PCC".  Poucos dias após a referida 'visita', o Ministério da Indústria e Tecnologia de Informação anunciou novos regulamentos que proibem todas as companhias da mídia com investimento estrangeiro de publicarem on-line na China sem aprovação governamental.          
            Mas a repressão não se limitou de forma alguma apenas à mídia. Centenas de cruzes foram arrancadas das fachadas de igrejas cristãs, padres e pastores presos, e os seus advogados de defesa detidos, e obrigados a fazerem reconhecimentos públicos de culpa. E também no que concerne ao crescimento da sociedade civil ao longo das últimas décadas, uma nova lei da sociedade muito mais restritiva está sendo redigida com o intento de colocar em sobreaviso as ONGs, para que não colaborem com a contraparte estrangeira ou desafiem o governo.
             Simultâneamente, pesquisadores com pensamento independente  em 'think tanks'[1] e professores demasiado francos  nas universidades já se preocupam "com o efeito congelador" das políticas de Xi na vida acadêmica tanto da China, quanto em Hong Kong. Ativistas feministas que fizeram demonstrações contra o acosso sexual foram presas "por incitar a brigas e provocar problemas", enquanto os advogados de direitos humanos foram varridos por maciça onda de prisões, acusados pela "criação de desordem pública" e até mesmo por "subverter o poder do Estado".
               Outro aspecto inquietante é que Beijing está intensificando a sua pretensão de controle de pessoas e de organizações além de suas fronteiras. Nesse sentido, a China tenta manipular a opinião estrangeira através de muitos institutos Confúcio no exterior, assim como jornais, revistas e até mesmo tevês que estão subordinadas ao departamento de propaganda central e o PCC. Isso ao mesmo tempo que defendem a própria soberania na informação...
                  Práticas usadas no passado, mas agora reforçadas, estão na negação de vistos a jornalistas estrangeiros e professores (scholars) havidos como inamistosos. O Dalai Lama - que sempre foi objeto de uma frenética fobia - como se ele fosse o mais perigoso inimigo de Beijing (o que talvez, pela própria personalidade e poder de atração, ele o seja). Sempre faltou ao governo chinês sensibilidade para dialogar com o símbolo da resistência à opressão no Tibet. Entretanto, por esse mundo afora - e fantasma sabe para quem aparece - Beijing logra pela intimidação que diversos governos não o recebam, como por exemplo os sucessores de Nelson Mandela  na Africa do Sul.
                    A audácia chinesa nesse ponto não conhece limites, e chegou a tentar que o Presidente Obama, há pouco empossado, acedesse em restringir certos aspectos do cerimonial da visita do Dalai Lama.
                     Como assinala o artigo de Schell, a Comissão Central para a Inspeção Disciplinar (CCDI) está no epicentro dessa campanha nacional voltada para o maior controle e suposto rejuvenescimento da China, através da combinação de liderança mais vigorosa, a arregimentação de pensamento e mais profunda lealdade a Xi. Desde muito um dos mais poderosos órgãos internos do Partido, tão secretivo quanto temido, supostamente se dedica à manutenção da disciplina partidária. Quando Xi ascendeu ao poder e designou como Vice-Primeiro Ministro e membro do Comitê Permanente do Politburo Wang Qishan como secretário desse poderoso órgão, também o encarregou de lançar uma sem precedentes campanha anti-corrupção.
                        Wang toca muitos instrumentos na política chinesa. Além de professor universitário e estudante de história, ele chefiou o Banco Chinês de Construção, e também mostrou a sua proficiência em questões financeiras e comerciais sob Hu Jintao, quando trabalhou estreitamente com o Secretário do Tesouro americano Henry Paulson, no início do Diálogo estratégico e econômico entre os EUA e a China.
                         Porque Wang abandonou esse trabalho para se tornar um anônimo grande inquisidor  só pode explicar-se, como aventa Schell, pela estreita ligação com Xi, que data dos tempos difíceis quando ambos bastante jovens foram mandados para a paupérrima região de Shaanxi, nos primeiros anos da década de setenta.
                           O flagelo da corrupção existe no PCC e em outras instâncias da administração pela simples razão de que os agentes do partido e do Estado dispõem de grande poder (relacionado obviamente com a sua área de ação), enquanto recebem baixos salários. Intervindo em questões que envolvem grandes somas e podendo decidi-las desta ou daquela maneira, tornam-se suscetíveis de serem persuadidos pelas partes interessadas a entrar em esquemas de corrupção. É bom ter em mente que o Partido Comunista é onipresente na China, tendo a propriedade da terra e muitos outros bens de grande valia.
                             Deve-se recordar que Zhao Ziyang - que foi Primeiro Ministro e Secretário-Geral do PCC sob Deng Xiaoping - pensava possível controlar e reduzir drasticamente a corrupção através da liberdade.  O PCC como instância do poder se torna tanto fator, quanto fautor de corrupção. Por isso, para Zhao, somente através de sociedade mais aberta - e não sob o sufocante domínio do PCC - seria possível dispor-se de maneira mais eficaz  de expor a corrupção e os corruptos.
                               Como ironicamente a linha conservadora de Li Peng - com o apoio de Deng - prevaleceria, a China não evoluíu para a democracia, mesmo tentativa, como ocorreu com Zhao, afastado sumariamente pela clique conservadora que manobrou o velho Deng.
                                 A ascensão de Xi Jinping, por mais estranha que pareça, com a sua tentativa de recuperação de Mao Zedong (que nas décadas de Deng e com o regime burocrático posterior se limitara, como presença, ao poster gigante na Praça da Paz Celestial) traz para a China do século XXI uma ação contraditória como seria a do 'grande timoneiro', responsável por desastrosos surtos para a sociedade chinesa (e inclusive a infame paternidade da fome, que dizimou dezenas de milhões de camponeses).
                                  Dentre as armas para combater a corrupção, é difícil imaginar uma que privilegie a sociedade repressiva do PCC - que é o seu antro preferido.
                                   Essa violenta regressão preconizada e implantada a ferro e fogo por Xi Jinping trará grandes obstáculos - dentro e fora da China - para compatibilizar o ethos e o regime prevalente no Império do Meio com uma eventual superpotência que tenha reais condições de liderança na atual civilização mundial, com a sua onipresente rede de contatos, de laços e de relações com o restante desse inquieto planeta Terra, em que a liberdade, mesmo disfarçada ou adulterada, constitui um fenômeno mundial.   
                                   O que ora se tenta construir na China é sociedade opressiva, fascisto-comunista, em que o livre-pensamento, o pólen do desenvolvimento político, econômico e social, é sistematicamente afastado e reprimido, sob o olhar distante da anacrônica liderança de  Mao Zedong, cuja efígie os predecessores de Xi Jinping haviam sabiamente consignado à icônica função do gigantesco, mas silente retrato defronte da Praça de Tiananmen.

( Fontes: "Repressão na China: Cada Vez Pior", de Orville Schell, em The New York Review of Books; Prisioneiro do Estado, diário secreto do Premier Zhao Ziyang; "A República Popular da Amnésia - Tiananmen revisitada", de Louisa Lim, Oxford University Press ).



[1] Grupos de estudiosos

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