Em blogs anteriores, já me ocupei, posto que de forma incidental, do costume brasileiro, de imaginar que problemas penais e cíveis possam ser atendidos e resolvidos por intermédio da legislação respectiva.
É óbvio que não pretendo afirmar não ser indispensável a discriminação pelos instrumentos legais cabíveis – seja a Constituição, a lei, o decreto, a portaria e as instruções administrativas – para que os direitos e os deveres do cidadão e dos entes públicos e privados sejam consignados, elencados e delimitados.
Nesse aspecto discursivo creio que pouco ficamos a dever em termos de prolixidade legiferante a outros povos. Terá sido a nossa herança ibérica com as Ordenações Filipinas[1] que até hoje persiste a induzir autoridades e representantes eleitos a colocarem a própria inabalável crença na mágica capacidade da disposição legal – em todos os seus avatares hierárquicos – de atender e resolver às carências, demandas e questões, seja do interesse da metrópole (e depois do Reino, Império e República), sociedade, de seus estamentos, dos súditos e mais tarde cidadãos.
Esta fé, decerto comovente, nos mágicos poderes da palavra escrita e chancelada pelo Poder instituído, se conduz a uma grande valorização da norma, como instrumento de solução de larga escala de desafios com que se defronta a sociedade, traz igualmente consigo, nas características que lhe são inerentes, a convicção taumatúrgica[2] na capacidade da autoridade de, por meio da singularização do problema, determinar-lhe a respectiva solução.
Para que o leitor não pense que estou versando questões abstratas, mais adequadas a ficarem enfurnadas em poeirentos compêndios e calhamaços jurídicos, pediria a sua atenção para a primeira folha de O Globo deste sábado, dez de julho de 2010. Pois aí se depara a aplicação na prática do modesto enunciado teórico acima esboçado.
A principal manchete – Ninguém segue nem fiscaliza as novas regras de aeroportos: No Santos Dumont não há posto da Anac; em Guarulhos, ele fecha cedo – nos proporciona a primeira lição prática. Com efeito, não basta baixar disposições regulatórias, se inexiste, ou é insuficiente, a estrutura administrativa para implementar tais regras e - o que é mais importante - transpô-las do papel para a realidade cotidiana do cidadão.
Não se vá dizer que a Anac (Agência Nacional da Aviação Civil) esteja inovando.
Tais funcionários estão agindo no contexto discursivo da tradição ibérica das Ordenações. A fé na palavra da autoridade como um fim em si mesmo.
Permita-me o leitor mais uma viagem no tempo para que intente situar melhor uma outra questão de indubitável atualidade. Reportei-me acima às Ordenações Filipinas. A legislação da Coroa portuguesa estipulava regras severas e onerosas para a explotação das Minas. O erário real exigia o quinto do ouro retirado do rico subsolo mineiro. Nesse contexto, de suposta exação dos fiscais de Sua Majestade, a sonegação de seus súditos era fenômeno corriqueiro. A letra – e as ameaças - da lei não eram bastantes para garantir-lhe o cumprimento, por falta de meios apropriados.
Nesse contexto de severidade retórica e de laxismo na prática, irrompe o remédio extremo da chamada derrama, que é a cobrança dos quintos alegadamente atrasados. Foi a iminência da decretação de derrama um dos fatores que precipitaram a Inconfidência Mineira.
Também nos dias que correm encontramos a disparidade entre a lei escrita e a sua aplicação na prática, muita vez em função de jurisprudências que diminuem acentuadamente o prazo das penas. Quem já não leu nos jornais a concessão de saídas autorizadas para traficantes, ao cabo de cumprimento de um mínimo da pena, e fundadas em suposto bom comportamento ? Será lícito considerar surpreendente que os ditos traficantes não retornem à prisão, e se tornem foragidos, ao se valerem das autorizações concedidas pelos juízes de execuções penais ? Não seria tema para providências do Conselho Nacional de Justiça, de modo a evitar que tais suposições de boa fé – e de um alegado desígnio de exercer atividade honesta – possam ser instrumentalizadas de modo tão acintoso ?
Por obra e graça de sentença do Supremo Tribunal Federal, se estende ao máximo a presunção da inocência do acusado. Para que alguém possa ser preso por força de sentença, tal sentença ou tem de passar em julgado (isto é, o réu condenado em primeira ou segunda instância deixa correr o prazo sem contestá-la), ou tem de ser considerado culpado nas três instâncias. A muitos isto semelha espichar demasiado a presunção de inocência (e o assassino confesso Pimenta Bueno, já condenado em duas instâncias e ainda livre, é uma prova disso).
Discorrer sobre o permissivismo da legislação – e de certas jurisprudências – seria estender muito além este artigo. Voltemos, portanto, por um instante à citada primeira página de O Globo. O triste e tenebroso caso da pobre Eliza Samudio, alegadamente trucidada por motivo torpe e com requintes de crueldade, pode ser visto como um exemplo do desamparo da cidadã – que teve negada a proteção pela Juíza titular do 3º Juizado de Violência Doméstica, a despeito do pedido pela Delegacia de Atendimento à Mulher, por não considerar que ela fosse vítima de violência doméstica – e que acabaria nas mãos do goleiro Bruno e de seus cúmplices Macarrão e o ex-policial Marcos, para que pedaços de seu corpo como postas fossem jogadas aos cães Rottweiler.
E, por certo, fundados em alguma disposição legal, esses três senhores, além de se recusarem a prestar depoimento, não permitiram a coleta de material para exames de DNA. Talvez seja o caso de perguntar, como o fez um político hoje esquecido: Que país é este ?
A experiência nos mostra à saciedade que o cenário das Ordenações Filipinas e quejandos é uma ficção que, na verdade, se traduz em desrespeito aos seus propostos objetivos e numa realidade esquizofrênica, onde coexistem, a par da justiça, a instrumentalização de suas lacunas, e a injustiça em suas várias formas, todas elas danosas ao cidadão morigerado e respeitador das leis, que é a esmagadora maioria de nossa população.
( Fonte: O Globo )
[1] Compilação de leis feitas em Portugal no reinado de Felipe III, rei de Espanha e de Portugal (1598-1621).
[2] milagreira.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário