terça-feira, 27 de julho de 2010

CIDADE NUA IV

Um bom Partido (01)

Quando dona Ema morreu, os vizinhos do prédio e o vasto círculo de amigos e conhecidos pensaram que, depois de passado o período do luto, seu Álvaro fatalmente iria casar-se de novo.
Não que desconhecessem a felicidade do casal, e o quanto ambos se completavam. Ema, a patroa, esposa e mãe amorável e dedicada, guarnecia a retaguarda na vida agitada e trabalhosa do marido despachante.
Álvaro, por sua vez, tinha a simpatia própria da profissão. Para administrar os problemas de quem o procurava, sabia propiciar aquela atenção indispensável para motivar a parte, que se lembraria da disponibilidade manifesta no momento apropriado.
Dessarte, com personalidade gregária e aglutinadora, ele prodigava a todos os que vinham solicitar-lhe as providências profissionais a parcela necessariamente limitada de sua capacidade de atender a cada um, dando-lhes a impressão de um comprometimento integral.
Esse dom de escutar o próximo, mas também de valorizar-lhe o interesse carecia de apoio tão eficiente, quanto discreto. Dona Ema não só cuidava da casa e dos filhos, senão funcionava como a secretária do marido. Tinha o passo rápido, que não deixava o telefone tocar muitas vezes.
A voz suave, simpática, que atendia, tomava nota, e prometia, por conta do esposo, a ansiada providência.
Há gente que considera o despachante um parasita da burocracia. Pois a jeitosa dona Ema, que conhecia a freguesia, cuidava de personalizar, pela sua memória e o toque humano ocasional, o que atendente comum trataria com a indiferença da rotina.
Mulher de meia-idade, Ema partiu de forma imprevista, quase brutal, carregada por um desses males que muitos fingem ignorar ou, então, ao sentir-lhe próxima a malsinada e hedionda presença, batem na madeira e mudam rápido de assunto.
O enterro no Caju foi daqueles que os antigos colunistas chamariam de multitudinário.
Para os que se deleitam nas pompas fúnebres, seria sepultamento a não perder-se. A quantidade de coroas, a amontoar-se na câmara mortuária, e nas salas vizinhas; a barreira humana a acotovelar-se no tentado acesso ao viúvo; a aglomeração que permanece no pátio central, onde em geral se refestelam os vira-latas das cercanias, à espera da hora do cortejo – tudo isso lembra grandes despedidas, mortes prematuras de cantores e de heroínas de novela, ceifadas ainda no viço da fama.
Sob a soalheira da tarda manhã, a caudal humana acompanha o caixão, carregado pelo rangente carrinho, que empurra um coveiro com a cara das ocasiões solenes. A princípio, descem a alameda central, sob o olhar plúmbeo de bustos e estátuas de personagens então famosos e hoje desconhecidos. Passam em seguida por um dédalo de caminhos de tumbas em áreas nas quais se alternam as caiadas arrecém, ainda com as flores das visitas amiudadas, e as muitas já largadas e corroídas pelo esquecimento de gerações.
Ao longo do esquife, que se esgueira por precárias vielas, e pelos espaços laterais dos túmulos avançam , multiplicando-se em apressados afluentes. A turba se espraia pelas quadras dessas moradas, até postar-se em concêntricos movimentos em torno do modesto jazigo. Ali, com a lousa levantada, o féretro será em breve engolido na viagem sem volta que a todos espera para as funduras do Hades.
O pedido de seu Alvaro foi repassado aos circunstantes. Nada de discursos, portanto.
Circundado pelos filhos crescidos, ele agradecia maquinalmente os pêsames. Embotado pelos calmantes, as palavras de conforto pareciam vir de outra dimensão. Mais de uma vez um dos rapazes lhe falava da impressão de um comparecimento tão maciço, a que comparavam a coisa de celebridade.
No seu alheamento, até que o aglomerado que espantava os filhos não o surpreendia tanto.
“ Ema, afinal, era pessoa muito querida...”
Ao ouvi-lo, João, o mais velho, sacudiu a cabeça e lhe sussurrou:
“ Que nada ! São seus clientes, pai !”
E na placidez das pílulas,os olhos ausentes de Álvaro o encaravam, como se estivesse a milhas de distância.
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