quarta-feira, 28 de julho de 2010

CIDADE NUA IV

Um bom Partido (02)

Álvaro não ignorava que o seu ramo de atividade não admitia longos afastamentos. Montara com paciência e tenacidade vasta rede de contatos, que lhe asseguravam satisfazer com a possível presteza as necessidades, as obrigações e até os caprichos de seus clientes. O seu nome como despachante se estendia, reforçava e ampliava pelos resultados obtidos. As partes não queriam saber das horas desperdiçadas em longas esperas, muitas vezes causadas pelo arbítrio cruel de pequenos burocratas, de quem dependia uma chancela ou firma incontornável.
Empunhando o seu bom humor profissional, buscava manter a ansiedade longe do semblante, sempre simpático e descansado, como se o contato fosse o único da jornada. Enfronhado o quanto podia das idiossincrasias do funcionário, só avançava no campo delicado dos agrados se para tanto tivesse elementos.
Ema tinha sido uma notável secretária. Lamentava a falta que lhe fazia. Nada mais simbolizava a súbita dificuldade com que se deparava do que a penosa mudez do celular, antes ágil ferramenta de trabalho.
Menos de duas semanas do passamento, retomou o batente.
Pensou que a faina diária o distrairia do vazio trazido pela sensação do luto. O problema é que tudo o levava a sentir a sua ausência. De início, tentou bastar-se a si mesmo. Na rua ou nas diversas repartições, atendia também às chamadas dos clientes, no celular usado por Ema.
A frequência das ligações e a sua imprevisibilidade, acontecendo em horas nas quais literalmente não poderia dividir a própria atenção, o convenceram a suspender o intento de duplicação já no fim do primeiro dia.
Voltou para o Grajaú, à noite, desencorajado e inquieto. Com as suas confusões e atropelos o dia lhe mostrara que o esquema do eu-sozinho jamais iria funcionar a contento.
Ainda turbado, entrou no apartamento. Lá o esperava, com sorriso tristonho, a filha caçula, Raquel. Os outros dois filhos, João e Roberto viviam fora.
Ao vê-la, gorducha e desmazelada, lhe acudiu ideia de que depois se arrependeria. Por que não experimentá-la como atendente ? Ele lhe pagaria pelo serviço...
“ Você acha, pai, que isso vai dar certo ? Não tenho prática...”
Ouvindo-lhe a reação, a primeira dúvida repontou. Mas, tangido pelas circunstâncias, resolveu insistir.
“ Não se preocupe, que é coisa simples... Vou lhe explicar tudinho...”
A filha tinha razão. Não foi preciso mais do que uma semana para que os dois se capacitassem de que as coisas não estavam indo nada bem.
Na verdade, pensou, Raquel era a completa negação da secretária.
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