A vivida experiência o tinha, e de certa
forma, advertido. A visita a certos ambientes nem sempre é aconselhável.
E não se referia, aqui, a cenários
transidos por dolorosos, dramáticos eventos.
Nesse caso, a recomendação pesaria ainda
mais forte, decerto com a própria mão calosa e insensível.
Pensava sim, na vivência de tempo que imaginara
arquivado, e, por isso, deslembrado.
Já disse o poeta que esquecimento
também é memória, podendo jazer até em lúgubre recinto reservado às achas de
lenha.
Disso saberás, tolo que foste em
aprofundar-te nos espaços que a frágil memória de certa maneira acomodara nos
escaninhos das vagas remembranças, quando motivos burocráticos te arrastaram para
breves viagens em desvãos de que a desmemória te era útil para o silente cultivo
do olvido.
Uma porta se abre - e mais tarde hás
de pensar, que melhor seria se o empregado não houvesse trazido as chaves - e
sem querer, mas ao mesmo tempo querendo, viajas no passado, ainda que vazio,
despojado, cingido apenas às paredes, portas e à invasiva presença da
existência que foi tua, mas, por força da crueldade do presente, não pode mais
pertencer-te, a par das imagens sem corpo e sem memória que levas contigo, e
que, por desrazoadas que porventura pareçam, ali estão, na humilde soleira que
não tão inadvertidamente pisaste, para despertarem com as graças, as sombras e
as interrogações de antanho.
Quando vês de longe a tua formação,
não hás de distingui-la de o que realizaste. Mas ao palmilhá-la de tão
demasiado perto, mesmo sem o amparo dos móveis e de tudo o que de supérfluo faz
reviver a ambiência, hás de ler no despojamento das paredes, nos confinados
locais a ti reservados, a escritura miúda de o que soubeste arrancar da vida,
com a presença do ente tutelar que todo esse escasso muito pouco tornara
acessível, e que o caminho te abrira para outros lugares que ela mal
conheceria, mas que pela dedicação e a suprema confiança tornara realizá-vel,
dentro daquelas constritas e modestíssimas paredes. Daí a sensação de
desconforto que a vivência, por mais momentânea que fosse, daqueles olvidados
cômodos, que te diziam nas altas vozes de um filme mudo do passado o quanto tu
devias pelo esforço de quem te criara e que naqueles estreitos, acanhados
espaços há de permanecer enquanto o que ali estava, por despojado
e desnudado que fosse, ficasse de pé.
( Fontes: Carlos Drummond de Andrade, Homero )
Um comentário:
Belo texto, Pai, mas o que desencadeou essa viagem?
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