quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Viagem ao passado

                                    

       A vivida experiência o tinha, e de certa forma, advertido. A visita a certos ambientes nem sempre é aconselhável.
       E não se referia, aqui, a cenários transidos por dolorosos, dramáticos eventos.
       Nesse caso, a recomendação pesaria ainda mais forte, decerto com a própria mão calosa e insensível.
        Pensava sim, na vivência de tempo que imaginara arquivado, e, por isso, deslembrado.
        Já disse o poeta que esquecimento também é memória, podendo jazer até em lúgubre recinto reservado às achas de lenha.
         Disso saberás, tolo que foste em aprofundar-te nos espaços que a frágil memória de certa maneira acomodara nos escaninhos das vagas remembranças, quando motivos burocráticos te arrastaram para breves viagens em desvãos de que a desmemória te era útil para o silente cultivo do olvido.  
         Uma porta se abre - e mais tarde hás de pensar, que melhor seria se o empregado não houvesse trazido as chaves - e sem querer, mas ao mesmo tempo querendo, viajas no passado, ainda que vazio, despojado, cingido apenas às paredes, portas e à invasiva presença da existência que foi tua, mas, por força da crueldade do presente, não pode mais pertencer-te, a par das imagens sem corpo e sem memória que levas contigo, e que, por desrazoadas que porventura pareçam, ali estão, na humilde soleira que não tão inadvertidamente pisaste, para despertarem com as graças, as sombras e as interrogações de antanho.
         Quando vês de longe a tua formação, não hás de distingui-la de o que realizaste. Mas ao palmilhá-la de tão demasiado perto, mesmo sem o amparo dos móveis e de tudo o que de supérfluo faz reviver a ambiência, hás de ler no despojamento das paredes, nos confinados locais a ti reservados, a escritura miúda de o que soubeste arrancar da vida, com a presença do ente tutelar que todo esse escasso muito pouco tornara acessível, e que o caminho te abrira para outros lugares que ela mal conheceria, mas que pela dedicação e a suprema confiança tornara realizá-vel, dentro daquelas constritas e modestíssimas paredes. Daí a sensação de desconforto que a vivência, por mais momentânea que fosse, daqueles olvidados cômodos, que te diziam nas altas vozes de um filme mudo do passado o quanto tu devias pelo esforço de quem te criara e que naqueles estreitos, acanhados espaços há de permanecer enquanto o que ali estava, por despojado e desnudado que fosse, ficasse de pé.

( Fontes: Carlos Drummond de Andrade, Homero )

Um comentário:

Mauro disse...

Belo texto, Pai, mas o que desencadeou essa viagem?