Este filme de Ken
Loach ganhou a Palma de Ouro, no Festival de Cannes de 2016. Apesar da qualidade da película, ainda
assim foi surpresa a conquista do prêmio máximo do Festival pelo Diretor
britânico, de 79 anos (nascido em 1936, completou oitenta anos pouco depois).
O roteiro é a um tempo simples e
complexo, eis que trata do delicado linchamento aplicado pelos serviços estatais
de seguro de saúde no carpinteiro recentemente infartado. Ele está em welfare (licença de saúde), e aspira
poder voltar logo a ter um emprego de verdade (e assim tornar a ganhar de forma
condizente).
É um atendimento de cartas marcadas. De
forma lacônica, supostos especialistas recebem seus pedidos, tão insistentes quanto crescentes,
a que respondem de forma burocrática, sem qualquer mostra de ânimo ou mesmo
emoção. Toda a tentativa do operário de apelar para a via do bom senso - não se
menciona sequer o toque de justiça - será sempre indiretamente rechaçada
através da leitura de anódinos, pasteurizados até, boletins do invisível serviço
médico.
Ao lerem os sumários boletins que sempre
o mandam voltar para ulteriores exames, a rotina caminha para o exasperante, na medida em que a sua repetição
lhe vai tirando aos poucos a ilusão de que algum dia poderá retornar ao ofício
no qual sempre se assinalou pela experiência, destreza e capacidade. O operário
qualificado não desiste, apesar de ir gradualmente percebendo que é impossível
convencer aqueles autômatos da possibilidade de uma verdadeira recuperação. As
próprias tentativas do mestre-carpinteiro de asseverar que está bem são
denegadas pelos atendentes que, em resposta às suas perguntas, apõem sempre o
adjetivo médico às respectivas funções. Assim, eles e elas declinam a própria
condição supostamente humilde de
assistente medicinal ao reafirmar a determinação superior de que deve ainda
esperar até que se recupere do infarto que sofrera durante o próprio trabalho.
Malgrado a sua tenacidade, a ânsia
de tornar ao trabalho é sistematicamente truncada, pela certeza que vem dos
pronunciamentos lacônicos dos empregados do welfare
que jamais lhe abrem a porta de provável, e, por conseguinte, desejada
recuperação. Como estaca que lhe é fincada no peito, a inevitabilidade da sua
dispensa e a negra visão de um futuro com pensão insuficiente para manter-se -
logo a ele, Daniel Blake, que se sente ainda válido, sem embargo de todos os
baldes frios dos pseudodiagnósticos que lhe são lançados pelos assistentes que
se ornam do adjetivo médico, embora
pareçam para o operário infartado apenas peças da máquina infernal que jamais
lhe oferece qualquer perspectiva tangível de recuperação.
Para completar a lúrida travessia
do mestre-operário, o roteiro do filme de Loach ajunta um cast de perdedores, dos quais o personagem mais marcante, apesar de
seu destino previsível, é o de Hayley Squires, que como Katie encarna a mãe-solteira de dois filhos de que busca
desesperadamente prover a manutenção e a escolaridade. Atraente, ainda jovem,
do modelo buxom[1],
ela acaba caindo nas malhas da prostituição, depois de n tentativas de lograr
posições em empregos regulares, que por
um motivo ou outro, lhe são denegadas.
Esse episódio é traçado com muita
discrição por Ken Loach, consciente dos perigos desse sentimentalismo dito
barato diante das desventuras de personagem clássico dos dramas burgueses.
Já próximo do fim, o carpinteiro
parte para o desespero e busca tornar-se o público ícone do próprio calvário,
agora agravado pelo ritual corte, causado por motivo fútil, que lhe faz perder toda a esperança, não de adentrar o paraíso do
reemprego, mas sim ao invés o condena às tribulações de limbo tão cruel quanto
definitivo.
Pelo cuidado na apresentação,
pelos traços austeros e por suas cores propositalmente contidas, Ken
Loach bosqueja o retrato impiedoso, menos do personagem central, do que
do destino tão anódino, quanto implacável que lhe é escrito com os garranchos
do capitalismo de estado, que condena Daniel Blake sem mesmo sequer dignar-se
enunciar-lhe a sentença.
( Fontes: I Daniel Blake, Dante Alighieri, Karl Marx )
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