O vexame
internacional pelas condições dos cárceres no Brasil pode ser que provoque
conscientização mais aguda do problema, tendo presente a afirmação do Ministro da
Justiça de Dilma Rousseff, José Eduardo Cardozo, de que preferiria morrer a ser encerrado nas prisões
brasileiras. Contudo, aí se indica distanciamento preocupante quanto às
verdadeiras responsabilidades da pasta que então ocupava.
E seria ledo engano pensar em que a grita
internacional vá ter algum efeito para eventual revisão da atitude dos
ministros no que concerne a transformação
ampla da condição das cadeias e dos presídios no Brasil. Pois a assertiva de
Cardozo implica, de certa forma, em esquizofrênico distanciamento da realidade.
Se o responsável pela Pasta tratou da
questão das prisões e de seu abismal estado
presente como se fora algo imutável, tal implica no seu caráter em
achar-se a respectiva essência fora da
competência da principal autoridade do setor prisional.
O pressuposto de que vá ocupar-se
mais a fundo na questão - o que implicaria em pensar nas perspectivas de aperfeiçoamento corretivo - não é
discernível nessa reflexão da maior autoridade quanto ao nosso sistema
prisional.
Cardozo, enquanto Ministro, sequer cogitou na possibilidade de melhorar o
sistema, torná-lo mais humano e capaz de evoluir. Se psicanalisarmos essa
suposta atitude, não semelha possível que não se deduza visão ultra-negativa do
ministro delle prigioni (prisões),
pois a sua imagem de tais construções
não poderia ser mais derrotista.
Dado o caráter calamitoso desses
calabouços, em que os presos são tratados como animais (ou mesmo de forma pior,
eis que nas atenções dispensadas às alimárias há - ainda que pelo egoismo do
lucro - certos dados que são formalmente obedecidos, como tratamento mais
adequado a condicioná-las a ganhar peso e manter a respectiva saúde - além da
implícita preservação do espécime), a situação do sistema prisional no Brasil
atravessa crise ainda mais grave do que a sofrida por outras áreas.
Para que se tenha idéia da
gravidade da crise, há cadeias despojadas de teto, assim como presídios a que
se permite perdurar como locais de concentração de condenados, apesar de não
mais disporem de ambiente propriamente humano. Como poderia classificar os
presídios de Porto Alegre e de São Luís? Neles a deterioração física de suas
alas tem igualmente uma decomposição da natureza humana, pois não se poderia
considerar como normais as
características que lá prevalecem.
A autoridade nesses ergástulos
está deformada, na medida em que boa parte do poder carcerário é exercido por
facções, que têm a força quase total, dado o respectivo condicionamento a uma [1]vis que dentro do
microcosmo detém a faculdade de decidir sobre o direito à vida dos que ali
estão.
A degradação moral e física pode
expressar-se na alternativa: ou a renúncia da autoridade civil do Estado se
reflete no próprio reconhecimento de estritos limites de exercício do poder,
com uma espécie de auto-renúncia, fixada por um auto-cerceamento da soberania
estatal; ou em casos de desfazimento da autoridade inda maiores, guarda-se
apenas a aparência do poder civil, que apenas existe, nesse universo
bestializado, como simples faz-de-conta. Esse seria o famoso jeitinho brasileiro no mundo prisional.
Sabe-se quem manda, e se procura manter as aparências, de acordo com as
corruptas coordenadas que passam como sistema.
Para que tais antissistemas existam
e tornem a exceção regra, o bolo carece de ter os seguintes ingredientes:
distanciamento do Estado, como refletido no exemplo do Ministro de Dilma: ele
se via como autoridade política, e não tem tempo nem vontade de mudar as
regras, e torná-lo lugar de correção e de aprendizado para a mudança efetiva de
sistema existencial.
Como se fora maldição, pairam sobre o
estabelecimento prisional, duas autoridades. A primeira é a estatal, e por
isso, se autolimita, a uma postura
pro-forma, que é tanto mais fácil de ser mantida, porque objetivamente não
cerceia a real autoridade, desempenhada pelo fora-da-lei, cujo aparente
respeito à forma enseja a composição entre o poder formal, do Estado, e a força
nua dos supostos prisioneiros, cuja aparente renúncia enseja as condições
daquela composição.
Trazendo para dentro do
presídio, a imitação do mundo lá fora, guardadas as aparências a ficção da paz
dentro do ergástulo poderá ser mantida. O poder civil não desconhece, de resto,
que quem chancela a ordem serão os representantes da mala vita, na medida em que tal lhes aproveita.
Este é o status presente no mundo carcerário brasílico. Pela renúncia das
autoridades civis (V. lamento de J.E. Cardoso, Ministro de Dilma) são
dadas as condições para que se mantenha
a realidade presente, i.e., falta de
dotações apropriadas e de política submissa a condições que nada tem a ver com
o mundo prisional.
Em outras palavras, atendida a
deformação no presente dos presídios e dos cárceres, e o ethos dos dirigentes políticos nacionais, que não parecem ter tempo
para se ocuparem de cadeias e presídios, quem sabe não estariam dadas afinal as
condições para o surgimento de um novo Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria, que trouxe no século XVIII o Iluminismo para o universo prisional
italiano, com a sua obra prima Dos
delitos e das penas.
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