sexta-feira, 12 de maio de 2017

Por que o passado nos atrai? (II)

        

        Faz tempo que a velha foto se entremostra, colocada como está ao lado do teclado do computador.
         Faz tempo também que a coloquei ali. Na verdade, ela está inserida em recorte do New York Times, quando esse jornal era distribuído no Rio, em edição rodada no Brasil. Hoje ele nos chega digitalmente como tantas outras publicações, o que se lhe garante recepção tempestiva, não nos traz o antigo prazer de folhear o periódico.
        O famoso 'progresso' tem alguns senões. O que interessa, no caso, entretanto, é que a dita fotografia me veio junto com página dedicada à restauração de hotel antes famoso - o Ritz - em Paris, que fechara para os indispensáveis trabalhos de trazê-lo à antiga glória. Assim sob o título "Restaurando uma jóia na Coroa francesa", o Times publica fotografia de festa no meio do século passado.
         Há muitas mesas. As mulheres, de vestido negro, decotadas algumas, e os homens de smoking e gravata preta. Todos - ou quase todos - conversam, e se imagina as luzes do salão sob as vistas largas de anônima máquina fotográfica que para sempre dominará este jantar de ano-novo, as paredes com os drapeados veludos e  os archotes de cristal, lá no alto pendurados. Há colunas que as luzes próximas do flash desnudam com seus atavios de ano novo, e que irão aos poucos enegrecendo, à medida que a imagem da grande sala, em que os garçons a caráter parecem sair das sombras pelo branco nas gravatas e colarinhos, se irá tornando cada vez mais indevassável. A grande sala de festas do Ritz  como que protegida pela noite profunda, que entre os convidados se espalha, alguns mais adentro, na luz subitânea e caprichosa de meio-século atrás, com essa gente engalanada  na fruição do momento, e os convivas mais adentro, ignaros da tóxica atmosfera de acesos cigarros, cachimbos e charutos no festival do fumo. Contemplando a visão do além seleto, ainda que premonitório, pois a névoa não é londrina - que seria coisa de Dickens, Stevenson e do século dezenove - mas com pinceladas da Lutécia do último meio-século. Ali há lindas mulheres, que sorriem para a imaginária câmera. Mas nem todas. Por motivos que a razão desconhece, o olhar se encaminha para a  dama que com olhos bem abertos nos contempla, como a perguntar-se o que faço a perscrutar do longínquo futuro aquele banquete de um ano novo já perdido nas brumas do passado. Muito jovem ainda, com os cotovelos vincados na alva toalha de bordas rendadas, ela parece perguntar que estou fazendo tal qual um peeping-tom do futuro de quem lá esteja a perscrutá-la com os olhos plácidos de admirador de natureza morta. Bem viva ela me parece, e como que sai da foto a atenção para sempre fixada no que se lhe depara, e para nós - e para mim - está defeso para sempre. A comemoração do ano novo mal findou, e ela ainda guarda, sobre os cabelos negros, como que um boné frígio, que lhe vinca a testa, e marca os olhos da jovem que ou deparam um pobre fotógrafo, ou se pergunta de o que o porvir reserva a ela. Esses instantâneos que a noite do passado, subreptícia como sempre, nos lança, serão imagens pressagas de o que nos espera? Paris, Lutétia quando jovem, se passados alguns anos - pouco mais de uma década - me proporcionou imagens - que guardo em espaço tão perecível quanto os personagens dessa festa.

                Pergunto-me então se essa jovem dama ainda está viva. De minha parte, a que, na mesa ao lado, mostra os ombros nus e negra gargantilha  no pescoço, e para sempre sorri ao acompanhante masculino de costas para o fotógrafo, enquanto ignora tudo o mais à sua volta, eu a deixo para sempre, enquanto hirta figura de festim para o qual não fui convidado. Mas, como pela juventude terá sido possível que eu cruzasse com a outra inquisitiva figura, seja em embaixada, seja em restaurante da moda, aqui deixo a pergunta, à maneira de tantos que jogam moedas em marmóreo monumento.    

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