domingo, 5 de março de 2017

As Vilas Poniatowski do Itamaraty

                              

         No Globo de hoje, a reportagem principal é relativa ao Ministério das Relações Exteriores, também conhecido como Itamaraty. Servindo-se do exemplo de muitas chancelarias estrangeiras, que são conhecidas ou pela localização de suas sedes, ou pelos títulos dos edifícios que as abrigam, tal Ministério é também denominado por conta de Palácio Itamaraty, o sobrado na antiga rua Larga, que era a residência do Conde de Itamaraty.
         A Secretaria dos Negócios Estrangeiros teve mais de uma sede no século dezenove, em que o Brasil se independizou sob Pedro I e a quem sucedeu, por maioridade antecipada, o filho Pedro II, cujo reino se estenderia até 15 de novembro de 1889, data em que o Brasil deixou de ser a única república latino-americana[1], e entrou para a grei dos governos saídos de golpes militares.

          Em termos de diplomacia, o Brasil pode considerar-se afortunado, pois teve Alexandre de Gusmão, como nosso precursor (este santista ilustre chegou a moço de escrivaninha do então rei de Portugal, e é o grande negociador do Tratado de Madri, que no século XVIII traçou grosso modo os confins de o que seria o Brasil). À distância, eis que mandava detalhadas instruções para o nobre negociador oficial, mereceu, pela erudição e visão de conjunto, o elogio do Conde de Lancastre, que representava nessa determinante negociação o rei de Espanha.

           Pelos caprichos da República, o Palácio do Itamaraty, depois de sediar o governo provisório do Marechal Deodoro da Fonseca - que rasgou os laços com o Império do Brasil - única república sul-americana no dizer de um notável argentino, quando soube, no estrangeiro, do golpe de quinze de novembro - passaria mais tarde a abrigar o Ministério das Relações Exteriores, sob o Barão do Rio Branco, que aí ficaria até a sua morte, às 9 e 10 da manhã, de 10 de fevereiro de 1912, na grande "sala em que vivera e trabalhara durante os últimos nove anos" (Apud Álvaro Lins, Rio Branco, Cia. Editora Nacional (p.471) ).

             A transferência do governo do Rio de Janeiro para Brasília, a grande realização do Presidente Juscelino Kubitschek, teve a qualidade de valorizar o enorme interior do Brasil, que as bandeiras e entradas haviam explorado e conquistado, mas que permanecia meio que dormente, antes que a visão de JK e de sua gente não o arrancasse dessa centenária  sonolência, com os brasileiros, no dizer de Frei Vicente do Salvador, no litoral a arranharem as costas como caranguejos.

           Não vou aqui ocupar-me da alemã que ao casar-se com herdeiro da coroa dos czares lhe tomaria o lugar e se tornaria Catarina a Grande, destino a que não poderia sonhar nos seus pequenos domínios  de uma Alemanha do Tratado de Westphalia, na época mais designação geográfica do que política.
          Entra ela aqui, à maneira de Pilatos no Credo, por força de um golpe palaciano e da capacidade demonstrada. Ela é rememorada pela famosa visita sua ao interior do próprio império, instrumentalizada que foi pelo seu favorito, o Conde Poniatowski, que organizara visita da Tzarina ao interior da Rússia, devidamente enfeitado para os olhos da soberana, como se ali vivesse gente feliz e bem alimentada. Nesse sentido, as chamadas vilas Poniatowski passaram a identificar esse tipo de excursão devidamente enfeitada para os olhos de quem for o visitante soberano da vez.

          Mas vamos ao que mais interessa. Noticia hoje O Globo que embaixadas da era PT podem ser fechadas. Trata-se de estudo aprovado pela Comissão de Relações Exteriores do Senado em dezembro de 2016, então presidida por quem será o novo Chanceler, Aloysio Nunes.  Segundo o levantamento feito, 44 embaixadas criadas notadamente pelo governo Lula da Silva (com o adendo da Administração Dilma). A grande maioria dessas missões está localizada em países de África e Caribe, com gasto de R$ 378 milhões por ano (o que é mais de 10% dos dispêndios do Itamaraty no exterior em 2015).
             A idéia do então Ministro Celso Amorim (sub Lula)[2] seria a de, através representação mundial do Itamaraty junto a todos os países-membros das Nações Unidos, aumentar pela pressão amiga em postos menores (tipo África, Ásia e Caribe) a nossa presença diplomática, e consequentemente a necessária simpatia no apoio à eleição do Brasil para membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas.  

                As pretensões do Brasil a membro permanente do Conselho são antigas. Consta que se o Presidente Franklin Delano Roosevelt tivesse vivido um pouco mais (morreu em abril de 1945), o Brasil - e não a França - seria membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
                Desde então, como um boxeador estonteado por um murro saído não sabe bem de onde, o Brasil vem tentando,seja  com repetidas presenças como membro temporário no Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), seja com a colocação da eventual candidatura como membro permanente em hipotética reestruturação do Conselho terçar armas com periódicos rivais a esta posição (v.g., Argentina e México).

                No tempo do governo do presidente Lula da Silva, o seu chanceler pensou haver topado com um meio de reforçar a nossa perene candidatura a um assento permanente no Conselho (é oportuno assinalar que as modalidades de tais eventuais reformas do CSNU podem variar como as sazões e os humores respectivos).
                 Ainda na sazão do presidente Lula, e de seu ministro Celso Amorim, se pensou que aproveitaria muito à candidatura brasileira se tivéssemos missão permanente em todos os países representados nas Nações Unidas.

                 Não é pequeno esforço ter embaixada em mais de uma centena de países. Apesar de as missões serem pequenas, a respectiva lotação exige pelo menos um diplomata e um administrativo (isto cortando na carne, porque a chefia tem de ser de membro da carreira. No caso de substituição, e esta é obrigatória pelo menos uma vez por ano, porque todos têm direito a tirar férias, coloca-se a necessidade de chamar alguém de outra missão brasileira próxima, ou até da Secretaria de Estado, para assumir a chefia, por pelo menos trinta dias).

                   Há vários detalhes, no entanto, que podem parecer fáceis no papel, ou nos gabinetes de Brasília, mas que não o são em locais dotados de comunicações deficientes, de pessoal administrativo brasileiro inexistente, além das dificuldades inerentes aos postos ditos especiais  (dificuldade de acesso, pouco ou nenhum apoio local, condições de saúde precárias, etc.)

                    Não surpreende, portanto, que, quando passei pelo Caribe (seja dito, às minhas próprias expensas e em férias) me condoía a condição dos colegas, em geral isolados, e com apoio administrativo ou reduzido, ou no momento indisponível (e põe momento nisso!).
                     Qual foi, por conseguinte, a consequência deste falso ovo de colombo da ubíqua presença junto a todos os países membros das Nações Unidas?  Além do indizível sacrifício de nossos colegas diplomatas, que em muitos casos eram chefes deles mesmos, muita vez sem nenhum outro pessoal diplomático, e também sem auxiliares administrativos qualificados, como são os oficiais de chancelaria e os oficiais de administração.
                      Quando se é chefe de si próprio, ou se enfrenta situação algo similar pela falta de auxílio qualificado, o chefe de missão leva simbolicamente muitas cargas e pesos - que não aparecem nos registros oficiais - mas que o perseguem física e materialmente, além de restringir-lhe as possibilidades de ação. Um chefe de missão que não dispõe de auxiliares dignos desse nome pode luzir bem nos manuais de Brasília, mas é de escasso apoio para a condução de política externa desse nome. Sabedor ou não, o ministro das relações exteriores que propôs esta suposta solução mágica para a busca do apoio da chancelaria local para a nossa candidatura ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, na verdade, consciente ou não, apresentava ao Chefe de Estado de turno um plano mágico para a antojada conquista do assento permanente no CSNU - que a sorte madrasta já nos roubara uma vez !

                        Em minha longa carreira diplomática - cinquenta anos! - apesar de só ter sido lotado em missões diplomáticas que tinham previstas lotações maiores, por vezes, ainda que raramente, a sorte ou as condições locais me deixaram por períodos não tão curtos quanto desejara, como único diplomata na embaixada. A boa sorte - e o eventual apoio administrativo - me assegurou que sempre chegasse a bom porto.
                         Mas como fica a situação de muitos de nossos colegas do Itamaraty, que tem o Deus dará como assessor, e salas vazias como conselheiras? Como alguém que tem conhecimento das exigências do Itamaraty e de suas missões no exterior, pode pensar que a missão com um único diplomata (que acumula chefia, trabalho de secretaria e até da manutenção das comunicações) tenha condições de luzir como alguém que possa arrancar apoio para a candidatura do Brasil a um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas?

                               Não surpreende, portanto, que esta solução mágica para a conquista do ouro do assento permanente no Conselho de Segurança, possa impressionar nos gabinetes de Brasília, mas, na prática, que valor efetivo poderá ter?



(Fontes: Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri, de Jaime Cortesão; Rio Branco, Álvaro Lins, Brasiliana, vol. 325; O Globo )



[1] no dizer de um notável argentino.
[2] No tempo de Dilma, em que o Itamaraty receberia menor atenção, os Ministros foram Patriota e Figueiredo.

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