sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Balas perdidas e a Cidade grande

                      

         Na verdade, a chamada bala perdida, é resultado em geral de uma determinada situação. As balas perdidas tendem a crescer - e hoje tal fenômeno do descontrole aumenta exponencialmente - no que se reflete um fenômeno típico do Rio de Janeiro, que só é concebível em cenários nos quais a Polícia Militar perdeu o controle da situação.
         Muito se esperou da chamada reinserção das favelas por intermédio das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora). A primeira UPP - saudada como se fora a mensageira de um futuro de paz nas favelas - foi a do Morro Santa Marta, cuja pacificação - dada a área menor envolvida - não apresentara grandes problemas. Os resultados obtidos nessa favela de menor extensão (e por conseguinte com maior capacidade de controle), deram o necessário reforço de propaganda e de convencimento público quanto à viabilidade de se inserir a favela dentro da cidade, se por inserção entendermos na verdade a virtual ligação entre as duas partes da cidade do Rio de Janeiro, na concepção de Zuenir Ventura quanto à chamada cidade partida. Se confirmado o êxito dessa revolução urbana, desapareceria a partição entre morro e planície.
           Na euforia do sucesso de Santa Marta, os efeitos dessa revolução urbana estariam por confirmar-se.  Com a chamada Retomada do Complexo do Alemão - quem não se recorda da ocupação dessa grande favela em magna-operação, com direito à presença dos respectivos blindados de Marinha, Exército e Aeronáutica ?  Se não se aproveitou  o enorme dispositivo militar para a respectiva detenção da mega fuga dos fora-da-lei (mais de trezentos bandidos que saíram da parte alta do Alemão, e que, estranhamente,  permitiriam que desaparecessem na cidade grande, lá embaixo ). Seria como, no oba-oba da liberação do Alemão, as forças da ordem tivessem pensado que o enorme bando  deixara de apresentar qualquer perigo... Pra que então prendê-los ?  De toda maneira, a debandada permitida mostra uma estranhíssima atitude, como se fosse coisa de somenos deixar livres a todos os bandidos que corriam, que pulavam em caçambas de caminhonetes, etc. etc. Sem o saber, recusando-se a prender aquela malta, a força de segurança já indicava a possível evolução daquela 'grande vitória'.
             No grande entusiasmo com as festividades antecipadas do virtual desaparecimento da favela como centro de bandidagem, além de não mais ficar "off-limits" da cidade grande, e sim nela integrada, valia tudo ou quase tudo, nesse clima triunfalista (até teleférico foi instalado no Alemão, teleférico esse que hoje não mais funciona na prática, porque a violência voltou).
              A própria Tevê Globo traria a nova atmosfera instaurada nas favelas por intermédio da novela Salve Jorge   de Glória Pérez, estrelada por Rodrigo Lombardi (que fazia um militar) e Flávia Alessandra (também no papel de mulher no exército).  Também no elenco o saudoso Domingos Montagner, que estrelava no grupo turco, e como super-vilã, a atriz  Cláudia Raia. De acordo com a trama, o Alemão se inseria quase como um bairro à cidade grande, com boa quantidade de personagens, todos já sob o novo enfoque da favela integrada na realidade do cotidiano urbano da Cidade Grande.
              Não há negar que o esquema UPP com o aparente êxito do Alemão recebera um senhor avanço. Talvez  a pressa em instaurar a nova ordem terá sido um desenvolvimento quase automático, diante do aparente espetacular sucesso  do esquema introduzido pela saga do Alemão.
              Desse modo, dentro de um clima de euforia - euforia que se alimentava do alegado êxito no Alemão - crescia a ansiedade pela implantação generalizada do modelo Santa Marta e das UPPs, que uma vez instaladas viravam prontamente como se fossem na prática verdadeiros passaportes para um futuro em que a favela coexistisse com a cidade grande, não mais como uma área a não ser transitada por taxi nem visitada por turistas vindos da cidade tradicional.
                Esse cenário que seria transposto para outras novelas da Rede Globo, ganhando assim foros de realidade, tenderia a aumentar a pressão citadina para que as UPPs aparecessem por toda a parte, como bandeirolas a espelhar a absorção da favela pela mesma cidade grande.
                Tal cenário começaria a ser, na prática, contestado por eventos que se chocavam com a visão da favela quase-ordeira e urbanizada, que os seriados da TV Globo continuavam a lançar nas salas de visita  da urbe.
                 Podem se considerar marcos na lamentável descida e consequente desfazimento de uma bela e tão agradável ilusão - o desaparecimento da favela no Rio de Janeiro como se fora em um processo mágico - quando o movimento que poderíamos chamar Santa Marta-Alemão começou a mostrar ocorrências e problemas que relembravam com demasiada força a anterior imagem do cronista Zuenir Ventura,  quanto à cidade partida.
                 O caso Amarildo será decerto o que os ingleses denominam de turning point, só que nesse episódio a existência na Rocinha de uma favela violenta, incluída a possibilidade do destino da vala, que é uma versão do desaparecimento, que abarca bandidos, tipos intermédios e gente pacífica, dentro de um submundo que não repontava, eis que o seu desaparecimento tinha sido um "grande exagero".
                Outros golpes houve que desmantelaram a piedosa fábula da vitória miraculosa no Alemão. As UPPs, que pareciam o talismã da nova ordem, se viram engolfadas no retorno dos tiroteios entre bandos rivais que se empenham, com armas, por dominar o tráfico nas favelas. É  o que ocorre no Pavão-Pavãozinho, outra área supostamente "liberada", que de repente resolveu voltar aos tiroteios tão conhecidos (e uma das grandes fontes das chamadas balas perdidas), e com isso infernizou a área vizinha do túnel entre Barata Ribeiro e Raul Pompeia,  com perigo para  áreas urbanas na Sá Ferreira, para não falar na ladeira Saint Romain, antes pitoresca, hoje praticamente off-limits.    
                   Dessarte, a crença bastante difundida de que as favelas poderiam ser liberadas por literais passes de mágica, esqueceu de computar no problema a permanência eventual do tráfico, as disputas de posse de área, e last-but not least[1], o que fazer com o modelo da UPP - que carece, no mínimo, de uma reformulação radical.
                    A nossa velha propensão em acreditar que os milagres civis são possíveis, pode ser até aceita, mas desde que submetida a uma série de retificações. As chamadas balas perdidas têm aumentado de forma geométrica nos últimos tempos, criando, nos bons exemplos, muita angústia nas famílias colhidas por esse esquema infernal, e nos maus exemplos - que infelizmente a fraqueza da PM e a ousadia crescente dos traficantes são fautores de uma situação inaceitável para as comunidades civis, como o dia-a-dia de subúrbio e de um morro que de novo semelha livrar-se da possibilidade de um controle eficaz - tudo isso não pode mais ser abafado.
                    A partida de Mariano Beltrame, secretário de segurança por dez anos, na verdade teve um outro tempo real,  em que a fórmula da UPP e o esquema a ela associado perdera a sua mágica.
                     E a pergunta que os cariocas não podem calar está em mapear o caminho de uma solução que nos aproxime de mundo civilizado. Se não mais soluções miríficas tipo Alemão, nem de intentos de transformar a favela (tipo UPP), em que mundo a autoridade vai colocar cidade e favela ?
                     Pelo menos, já sabemos que a mágica tipo Alemão não funciona.

( Fontes:  Rede Globo, O Globo, Zuenir Ventura )



[1] por último e não em menor grau

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