sábado, 6 de junho de 2015

Desconstruindo o Claro Enigma ISIS (II)


       
          É lugar comum que a natureza abomina o vácuo. Dessa constatação tão banal quanto lógica, salta aos olhos que a terra de ninguém em que se transformara a larga faixa oriental da Síria, esse antigo espaço de passagem entre os próximos Ocidente e Oriente não permaneceria assim por muito. Se a natureza abomina o vácuo, o recuo de um movimento tenderá a ser desestabilizador a médio prazo.

          Faltando à Liga Rebelde poder bélico para quebrar o impasse, tal estado de coisas não iria perdurar por muito. Nesse sentido, o crescimento do Exército Islâmico se prevaleceu de dois fatores: (a) a aparição de virtual terra de ninguém entre o ressurgente poder do regime alauíta dos Assad e o núcleo duro da minoria sunita do Iraque, submetido a um Estado xiita em Bagdá; e (b) a piora objetiva da maioria sunita na Síria, com o enfraquecimento do campo contrário a Bashar al-Assad e o reforço da coligação xiita (Assad mais Teerã, além do continuado apoio da Rússia e do Hezbollah).

           A própria debilidade do lado sunita para muitos surgia como mais aparente do que real. Com efeito, faltava aglutinação e coordenação ao Suni. A liga dos descontentes desta seita majoritária no Islam clamava por uma reação. Nesses termos,   além da maioria sunita na Síria, cujo desconforto com estado de coisas desfavorável, tinha evoluido para demandas agressivas  (mas ainda políticas) por mais democracia. A brutal e desproporcional repressão do regime alauíta às passeatas e manifestações  pacíficas constituiria na prática o detonador da guerra civil na Síria.

          Não obstante, o capítulo da revolução sunita na Síria, por não ter levado à derrubada do regime dos Assad – como durante certo espaço de tempo tinha sido havida como certa, ocasionando inclusive a defecção de diversos aliados e parentes do clã dominador, e até previsões russas de terminal enfraquecimento do lado defendido pelo Kremlin – acabaria por introduzir uma nova situação, como acima referido.

           E o surgimento de novo turning point[1] nessa conflagração não passa, na verdade, de virtual reconfiguração dos fatores em liça, acrescida e exacerbada pela entrada de aparente novo personagem nessa luta intestina entre o tronco (sunna) e a facção contestadora (xia) nessa larga faixa do médio oriente.

           O califado do Exército Islâmico tem para a sua eventual consecução dois elementos básicos: (a) aglutinação da dispersa maioria sunita no cenário médio-oriental; e (b) sua reconfiguração valendo-se de cenário triunfalista da reação islâmica – a conjunção de poderes sob a figura tradicional do Califa.

           Para a implementação deste escopo – a formação de Estado militarmente forte e com localização geográfica determinada – entram as coordenadas oportunistas do ISIS (caráter nomádico de sua localização; acirramento das contraposições contra os principais adversários no universo árabe; recrutamento do proletariado interno [2] no Ocidente).

           O Califado para sobreviver olha para os poderes sunitas e suas eventuais dissensões internas. Também no lado oportunista – e consciente de seu papel de fanal do ressurgimento sunita no Oriente Médio – conta com a minoria sunita no Iraque seja como virtual integrante do Califado, seja como apoiador externo de sua implantação. A liderança do ISIS tem como seu maior aliado o poder xiita no Iraque, como prefigurado pelo anterior Primeiro Ministro iraquiano, Nuri al-Maliki. Al-Maliki não teve a visão de congregar as duas principais seitas iraquianas (a shia e a minoritária suni).  Fê-lo a tal ponto que se transformou em poder de desagregação no Iraque, e por isso teve ao cabo de renunciar. Sucedido  pelo xia moderado Xaider al-Abadi, ainda não se mostrou como capaz de controlar o xia e de integrar as duas grandes correntes islâmicas, com vistas a viabilizar o Iraque.

                 Por força dessa situação e da calamitosa condição do exército iraquiano, até o presente Bagdá não se mostra capaz de lidar militarmente com o ISIS.

                 O  Iraque ora deve apoiar-se em Teherã para enfrentar o Exército Islâmico. O seu exército, dada a incúria e a corrupção endêmicas, não tem mostrado condições de constituir-se em adversário eficaz do ISIS. Ironicamente, pela sua situação lastimável, tanto em termos de disposição, quanto de liderança, as forças iraquianas muita vez servem de carne de canhão para o Exército Islâmico.

                 Além disso o ISIS se tem prevalecido da precariedade das forças armadas de Bagdá para transformá-las em virtuais e involuntárias fornecedoras de equipamento pesado para as forças islâmicas.

                  A assistência americana prestada à Bagdá não tem até o presente surtido maior efeito. Pode ser que dar condições de lutar contra e enfrentar de forma militarmente coordenada às motivadas formações do ISIS seja um desafio estrutural e não conjuntural para os assessores americanos do Exército regular do Iraque.

                  Como a história por vezes se repete, tal situação poderia configurar o inútil apoiamento concedido pelos Estados Unidos às forças do Viet-Nam do Sul, contra as do Viet-Cong e às do Norte.

                   Até o presente, o ISIS se tem apropriado do equipamento pesado proporcionado por Washington às forças armadas iraquianas. É uma forma de certo eventual e necessariamente precária a que recorre, por falta de melhor escolha, o Exército Islâmico.

                    No seu avanço a leste, através do Curdistão e do Iraque central, o ISIS tem levado a melhor contra a milícia peshmerga pelo armamento deficiente desses últimos, malgrado o valor bélico dos curdos. Já no caso de suas incursões na área de Ramadi, o exército islâmico prevalece pelo falta de preparo e de qualquer disciplina tática (e mesmo disposição para a luta) de seu opositor iraquiano (qualquer semelhança com as divisões de Saddam Hussein na guerra contra o Irã, em que Bagdá levou a melhor, constitui mera e acidental coincidência).

                     Até o presente, o Ocidente montou uma grande aliança contra  o ISIS. Inexiste, no entanto, por temor de reincidir em velhas e perigosas sendas, um braço terreste dessa confederação (excluídas, obviamente, as ineficazes e ineficientes forças do novo Iraque). A única manifestação desse poder está em associação aérea – de que a parte preponderante é desempenhada pelos EUA. Ora, são muito conhecidas as limitações desses ataques aéreos. São tática e pontualmente de grande letalidade, mas – excluídas opções politicamente inaceitáveis – no plano do domínio territorial são de escassa eficácia.

                     A própria resistência da ‘capital’ Raqqa aos bombardeios dos esquadrões de Tio Sam constitui indício cabal dessa limitação que é mais política do que militar.

                     Nesse contexto, houve de parte do ISIS recente tentativa de levar ao território estadunidense, a própria ação terrorista. Pelo seu total malogro, no entanto, tal ação,        que se pretendeu oportunista, não teve, além da eliminação dos terroristas, quaisquer consequências de maior peso.

                     Cabe, por fim, determinar se os possíveis avanços territoriais do Exército Islâmico continuarão com linha análoga à do Talibã no Iraque (a estúpida destruição estatuária do Buda).

                     O artigo do New York Times sobre os métodos do ISIS se reporta à circunstância de os integrantes do Exército Islâmico, após a tomada da cidade desértica de Palmira, destruiram a notória prisão de Tadmur,  há muito utilizada pelo Estado de Assad para a detenção e tortura de presos políticos.

                      Essa mensagem difere bastante dos anteriores procedimentos do ISIS, no que tange a ruinas e monumentos de longínqua antiguidade, em muitos casos considerada como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO.

                      Dado o anterior comportamento filisteu do ISIS, destruindo peças e ruinas de cidades e núcleos  históricos situados em territórios conquistados pelo braço armado do Califado, e as compreensíveis reações  mundiais diante desta postura vandálica e bestial,  é de colocar-se a interrogação se o Exército Islâmico, de acordo com variações passadas, mostrará alguma flexibilidade no capítulo (como poderia indicar a detonação de efeito político da prisão de Tadmur), ou se persistirá dentro da anterior boçalidade.

 

 

( Fonte: The New York Times, A.J.Toynbee, A Study of History )    



[1] Situação determinante
[2] A terminologia é de A.Toynbee

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