sexta-feira, 19 de junho de 2015

A Face Oculta do ISIS

                                         
 

       Não são apenas as decapitações de cristãos, de idólatras e de fiéis de outras seitas nefastas que constituem o aspecto obnóxio do Exército Islâmico.

       Aborrece a muitos e ao próprio escriba, em particular, o seu ímpeto destrutivo de ídolos da Antiguidade.

        Um animal irracional em um antiquário ou loja de cristais há de causar calculáveis perdas. Há de quebrar muitos adornos, pratos e até serviços de cristal da Boêmia, mas o infeliz proprietário, se lamenta os estragos, verá muitos artefatos preservados, porque a ação do agente no caso depende tão só do imponderável.  Tudo que foi lascado, rachado, quebrado, até espatifado, terá sido por alimária irracional. Como não tem lógica, nem razão, os seus estragos se apegam a uma caprichosa curva. Os prejuízos infligidos obedecem à probabilidade do acaso. Mas nunca terão – segundo nos mostram os vídeos de militantes islâmicos radicais – o empenho bestial da aniquilação.

        Este odium maquinal e programado,  que após a conquista para o ISIS de ulterior espaço de terra, se volta contra os sítios históricos, provoca a princípio perplexidade. Não é capricho de colecionador, mas reação compreensível de quem visite museus em terras do Ocidente. Nesse contexto, tive a felicidade profissional de visitar grandes museus, como o Arqueológico de Atenas, ou o Novo Museu da Acrópole – que espera, com paciência de santo, a devolução do frontal do Parthenon, pilhado, no início do século XIX, por Lord Elgin,e que continua a ser exposto como se nada fora, no British Museum. Bem sabemos que não só as grandes potências têm grandes museus mas também a Santa Sé, sem falar na Itália que chega ao requinte de distribuir-se em miríades de sítios, quase como se fora um parque arqueológico. Igualmente a Grécia pode ser vista quase como um museu ao ar livre, mostruário esse que se distribui pelas ilhas do Egeu, o Peloponeso, a Grécia continental, sem falar na Ásia Menor, em que as ruinas da civilização helênica repontam no que hoje são terras turcas. Talvez a bela surpresa de encontrar, nas colinas batidas pelo deus Eolos uma jóia da arquitetura helênica que é o tempo de Apolo epikouros, seja encantadora vinheta reservada aos viajantes pelos caminhos da Arcádia.

          Ao registrar essa visita à construção dedicada a culto hoje esquecido (mas protegida com o amor dedicado às antigas aras do deus Apolo que vem em socorro), recordo-me que o seu famoso arquiteto o dispôs no topo de monte que descortina os verdes mas acidentados relevos e planuras da Arcádia. Lá não se vêem mais pastores, porém os ventos continuam a soprar naqueles páramos, a tal ponto que a autoridade helênica cuida de preservá-lo com pesadas cortinas de cautchu.

           Hoje os visitantes aos templos helênicos – e por fortuna muitos resistem às insídias do tempo – deparam nas suas hieráticas colunas a austeridade imposta por milênios de paz, conflitos, invasores com o seu cortejo de desgraças e sinistros. Com efeito, a construção do templo passa a enfeixar solitária todas as belezas e adornos – imagens votivas, doações em agradecimento, mementos de grandes vitórias – que a divindade Cronos (o tempo) carregou. Assim, não foi esse tempo que os levou, mas a longa monotonia dos séculos que os caprichos dos raios e dos impios sóem quebrar.  

            Antes de voltar aos vândalos da pós-modernidade (que são os islâmicos radicais do ramo sunita), gostaria de partilhar com o leitor outra experiência havida quando foram exibidos os chamados Bronzes de Riete,  São duas estátuas em tamanho quase natural que na época  foram encontradas em sítio do Mar Tirreno, em metal. Se não me engano uma das figuras guardava os olhos de porcelana. Eram obras originais trazidas de Helás (Grécia), que um desastre náutico (naufrágio) preservara para a modernidade. A trireme fora ao fundo, e pode-se imaginar o prejuízo do rico romano que as encomendara de algum escultor helênico do século I A.C. Ora esse infortúnio, uma vez descoberto e retirado das profundezas marinhas, após a sua longa restauração retornava às aras de glória – depois de intervalo de quase dois mil anos – preservados pela intervenção do deus Poseidon.

             Essa digressão – que, na verdade, não o é – pode ser um memento de como enfrentar os azares da sorte e, sobretudo, dos séculos.

             O Deus Cronos é indiferente. A natureza humana sendo o que é, e os cultos religiosos sendo o que são – e, em termos de destruição, temos infelizmente de computar a intolerância religiosa, como fenômeno não-negligenciável.

              Para que se entenda o potencial destrutivo de energúmenos armados de porretes e martelos, bulldozers, moto-niveladoras, além de explosivos, tenha-se presente, como assinala Nicolas Pelham no seu artigo “ISIS & o renascimento xia no Iraque” que, após a conquista de Mosul no norte do Iraque, militantes islâmicos se lançaram à destruição da cidadela do Rei Assírio  Sargon II, em Khorsabad, a dezesseis km ao norte de Mosul.

              Como mote ao trabalho de arrasar essa cidadela do oitavo século A.C. , assim como das estátuas colossais  de touros alados, com cabeças humanas, que a guardaram por mais de vinte e nove séculos, se passou vídeo de um pregador dizendo: “Estamos livrando o mundo do politeísmo e espalhando o monoteísmo através do planeta”.

             Compondo a gravidade do problema, como assinala  Pelham, o Iraque tem doze mil sítios arqueológicos. Nesse contexto, Amir al-Jumaili, professor de antiguidade na Universidade de Mosul, já computou a destruição de cerca 160 sítios desde junho de 2014, quando o exército islâmico se apoderou de Mosul, a segunda cidade em importância no Iraque.

            Mas há outros sinais, referidos no artigo de Pelham, que a visão dos líderes do ISIS é a do lucro com os tesouros da Antiguidade.  Segundo Kamel, o diretor  do museu de Bagdad, o pessoal do ISIS “está escavando e não só destruindo.” Por trás da defesa do monoteismo, o que se depreende “ é que não passam de ladrões de tumbas”.

           Consoante o vídeo do ISIS, tomado em fevereiro de 2015,  acerca do trabalho de demolição do museu de antiguidades em Mosul, o seu escopo era o de mostrar para o mercado o que eles não destruíram.

           De acordo com al-Jumaili, das trinta peças originais na sala de entrada do museu Hatra, o ISIS destruíu dez. Eles não filmaram as salas pré-históricas, islâmicas e assírias (estas as mais valiosas), porque as peças e artefatos estão à venda.

           Segundo o professor al-Jumaili, os danos infligidos à sala Hatra tem por objetivo aumentar a demanda e elevar os preços no mercado negro.

            Há estimativas no governo iraquiano que o Califado já terá ganho centenas de milhões de dólares com as suas vendas de peças assírias.  Segundo assessor do Governo, o ISIS é a organização terrorista mais bem financiada, com cerca de oito bilhões de dólares. Com os bombardeios americanos das suas instalações petrolíferas, o ISIS quer diversificar os rendimentos. Consoante o articulista, esses valores não são confirmáveis, mas são julgados prováveis por iraquianos bem-informados, que Pelham consultou.

             Há muita especulação quanto à destinação dos milhões de dólares auferidos pelo ISIS. Além da construção da auto-estrada que vai de Mosul no Iraque a Raqqa, a sua capital (mencionada em artigo anterior), há poucos sinais quanto ao destino dos bilhões do ISIS. O que se sabe é que o rapto e o estupro de milhares de moças Yazidi pelo ISIS foi ‘legalizado’ pela liderança como ‘restos de guerra’. Por outro lado, o mesmo ‘direito de guerra’ valeu para apoderar-se da propriedade e dos bens de centenas de milhares de pessoas que fugiram da cidade.

              O ISIS não está sozinho em termos de decapitações, segundo Nicolas Pelham.  Nenhum grupo, entretanto, faz tanto publicidade e até mesmo ‘show’ dessa prática. Especula-se que a motivação deste ‘espetáculo’ seria provocar os seus oponentes no exterior a acirrar a perseguição aos grupos Salafistas.  Segundo essa hipótese, a expulsão dos salafis favoreceria o ISIS, porque aumentaria a sua base de fanáticos.

              O Primeiro-Ministro do Iraque, Haider al-Abadi estima que o exército do ISIS teria 43%  de estrangeiros em vinte mil homens. Em algumas áreas de Mosul, como Josak, um distrito com pessoas de maior poder aquisitivo, se ouviria mais inglês e francês do que árabe. 

             Estrangeiros ocupam também postos importantes na hierarquia do ISIS. O departamento de educação da Universidade de Mosul é dirigido por um binacional germano-egípcio, Sameh Dhu al-Kurnain. Ele fechou a seção francesa (fundada pelo orientalista Louis Massignon no princípio dos anos cinquenta), mas não o departamento inglês. Por outro lado, proibiu os iraquianos  de completarem os estudos no estrangeiro.

             No Iraque, há relativo otimismo quanto à recuperação do território perdido para o ISIS. No entanto, subsistem  muitas dúvidas como evoluirá a situação entre a minoria sunita e a maioria xiita. O Primeiro-Ministro al-Abadi é um xiita moderado, que tem atitude bastante mais aberta com relação à cooperação com a etnia sunita, do que o seu antecessor al-Maliki. No entanto, consoante Pelham, al-Abadi não teria muita força para realizar seus objetivos, por mais louváveis que eles sejam.

             Espera-se muito na ajuda americana, o que depois da confusão que aprontou George Bush e a guerra rápida, planejada pelo Secretário da Defesa Donald Rumsfeld, que teve as consequências amplamente conhecidas, deveria merecer mais ceticismo.

             Parece mui pouco crível que surja outra corrente nos Estados Unidos favorável a uma rápida guerra para livrar o Iraque dos invasores do ISIS, como nos tempos do Vice Dick Cheney e do Secretário da Defesa, Donald Rumsfeld. Depois do enorme prejuízo causado pelas loucuras de George W. Bush na economia americana, provocando, inclusive, o que ora se denomina o declínio da Superpotência, parece-me difícil acreditar que grupelho belicista,  junto com os neoconservadores, consiga uma vez mais trazer de novo o soldado americano para o atoleiro iraquiano...

 

“Fonte: ‘ISIS & the Shia Revival in Iraq’, artigo de Nicolas Pelham, em  The New York Review of Books,  4 de junho de 2015, número 10.”

Nenhum comentário: