sábado, 29 de janeiro de 2011

A Revolução Democrática chega ao Egito

Da pequena Tunísia, a mancha vermelha da revolução alcança o Egito de Hosni Mubarak. Há trinta anos no poder, Mubarak se acreditara com embasamento suficiente para preparar a passagem dinástica do mando para o filho Gamal Mubarak. O contágio democrático da insurreição tunisiana que, sem outra liderança senão a do povo, derrubara o ditador Ben Ali, agora se espalha no fértil terreno egípcio, com a população alienada por ditadura que, sem o carisma de Gamal Abdel Nasser que tampouco lhe melhorara a sorte, a par da corrupção prevalente. Se tal situação não muito difere da de outros países, como a Argélia de Abdelaziz Bouteflika (há cerca de doze anos na presidência), incumbe notar que o Egito é o maior país árabe, com cerca de oitenta milhões de habitantes.
Regressando do estrangeiro, Mohamed El-Baradej, Prêmio Nobel da Paz e antigo diretor-geral da Agência Atômica das Nações Unidas, ofereceu-se para encabeçar o movimento popular. É difícil determinar, por ora, a possibilidade de El-Baradej liderar a contestação egípcia, que se caracteriza, até o presente, pela sua espontaneidade e aceitação dentro de largo espectro demográfico. Por via das dúvidas, a polícia tratou de neutralizar o respeitado El-Baradej, colocando-o em prisão domiciliar.
Por outro lado, ao invés de o que intentam propalar fontes oficiais – no intuito de confinar ideologicamente a mobilização - essa sublevação não é de iniciativa da Fraternidade Muçulmana[1], que, malgrado ser tolerada,se acha oficialmente banida.
Na verdade, como na Tunísia, o movimento abrange largas camadas de um povo insatisfeito com a carestia, o desemprego e a onipresente corrupção. Se os islamistas se associam ao levante – e se tenha presente a relevância da egípcia Fraternidade Muçulmana como originária dos partidos e seitas islamizantes no mundo árabe -, constituem apenas uma parcela desse grande incêndio, que se espalha por todo o país.
Ateada pelo exemplo tunisiano, a sublevação se defronta com condições sociais similares àquele país do Magreb, com o crescente artificialismo do apoio popular ao regime de Mubarak, porém tem de lidar com um ditador egresso do exército, e que semelha disposto a enfrentar, inclusive valendo-se do exército, essa portentosa onda de renovação.
Alimentada pela insatisfação generalizada, a insurreição não acena diminuir, não obstante a pretendida dureza da repressão. Presente nas principais cidades – Cairo, Alexandria, Suez – e em todo o país, registram-se violentos confrontos, oficialmente se computam 24 mortos, com mais de um milhar de feridos e outro milhar de presos. Apesar de os meios eletrônicos e convencionais se acharem desativados – internet, twitter, celulares e telefonia – a insurgência tem demonstrado inventiva e habilidade em aglutinar-se nos logradouros e situações as mais diversas. Acicatada pela predominância da juventude, acentua-se a extensão e capilaridade da revolta, assinalada na presença – inusitada no mundo islâmico – de mulheres, a encarar com surpreendente desenvoltura cordões policiais, muitos deles constrangidos a posições defensivas.
A irradiação revolucionária – e a consciência de seus partícipes das razões e da justiça da própria ação - muita vez não tende a confinar-se nos limites habituais entre forças da ordem e o povo. Como se comprovou em outras oportunidades históricas, as forças encarregadas da repressão podem, em circunstâncias determinadas, sofrer o ‘contágio’ da básica mensagem revolucionária de justiça. Por isso, as defecções tendem a amiudar-se e a sua potência de induzir a imitação não deve ser subestimada. Afinal, os efetivos da polícia, sobretudo os de menor hierarquia, estão sujeitos amiúde a partilhar as mesmas condições que motivam aqueles que se encontram do outro lado.
Em termos de perspectiva, é cedo para redigir o obituário do regime de Hosni Mubarak. Nominalmente dispõe do exército mais bem armado e estruturado da nação árabe. Tampouco o ditador tem hesitado em servir-se de armamento pesado, na tentativa de contra-arrestar a onda democrática.
Recorrendo tanto aos bastões, quanto às cenouras, Mubarak, em rede nacional, anunciou a dissolução do ministério e a pronta formação de novo gabinete. Prometeu mais liberdade, mas asseverou que não renunciará: “ como presidente deste país, garanto que estou protegendo a população e garantindo liberdade, desde que a lei seja respeitada. As pessoas querem mais empregos, preços mais baixos, menos pobreza. Sei que todos esses temas são necessários, e trabalho por eles todos os dias. No Egito, o poder está com o presidente.” E acrescendou ser vítima de “parte de um plano maior para desestabilizar o Egito”.
Hosni Mubarak não tem a energia de antes. Com oitenta e dois anos, dizia-se ambivalente quanto a uma nova reeleição, ou a promover a sucessão pelo respectivo filho, Gamal Mubarak.
Sem embargo da exposição de forças blindadas, do gás lacrimogêneo, da ocupação de pontos nevrálgicos de comunicação viária e da brutalidade dos esquadrões de choque, a assertiva de Mubarak quanto à respectiva posse do poder se afigura questionável em diversos aspectos.
Por um lado, o toque de recolher não é respeitado. Em tardas horas da noite, não se vêem furtivos punhados de populares, mas o movimento constante do povo, o tráfego desimpedido de veículos e não o silêncio opresso e as ruas desertas impostas pela autoridade.
Dada a importância geopolítica do Egito, o que lá ocorre é observado com maior atenção, expectativa e mesmo nervosismo de parte de países vizinhos, de Israel, dos principais atores da União Europeia e da própria Administração Obama.
A eventual queda de Mubarak não será evento com influência restrita aos demais potentados árabes - há agitação e auto-imolações desde a ocidental, desértica e instável Mauritânia de Mohamed Ould Abdel Aziz, passando por Alger la blanche[2] de Bouteflika, pela monarquia marroquina de Mohammed VI, pela Jamahiriya Líbica de Kaddaffi, pelo Rei Abdullah da Jordânia, pelo pequeno Iemen do presidente (desde 1978) Ali Abdullah Saleh , e a antes pétrea Arábia Saudita, do sultão Abdullah), eis que Tel-Aviv acompanha inquieta os dissabores do Raïs[3] - com quem mantém relações diplomáticas, única exceção no mundo árabe – e Washington segue intensamente a progressão dos acontecimentos, dado o óbvio peso da aliança entre a superpotência e a República Árabe do Egito. Essa preocupação já se manifesta nas comunicações ostensivas do Presidente Barack Obama e da Secretária de Estado Hillary Clinton, com ênfase na oportunidade das reformas e do não-emprego da violência.
Não será especulação se o potencial desestabilizador da onda tunisiana atingir outros países, inclusive a nominal democracia xiita dos Ayatollahs. O fermento dos jovens e o fulgor das liberdades democráticas constituem um facho que incomoda sobremaneira os tiranos, mesmo aqueles de outras raças, posto que abarcados pelo largo manto do Islã.

(Fontes: O Globo, International Herald Tribune )

[1] Fundada em 1928 pelo mestre-escola Hassan al-Banna, o movimento de retorno às origens do Islã, constituiria a base do fundamentalismo islâmico.
[2] A branca Argel, com referência à cor alva de suas construções, em especial, a medieval Casbá (cidadela), que é tombada pela Unesco como Patrimônio da Humanidade.
[3] Presidente, título do Chefe de Estado egípcio.

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