Hereafter ( Além da Vida), o novo filme de Clint Eastwood, tem três estórias relativas a diferentes experiências com a morte. A primeira envolve a jornalista televisiva Marie Lelay (Cécile de France), em férias na Tailândia com o seu diretor de produção, Didier (Thierry Neuvic). Pela manhã, no hotel, ele prefere ficar na cama, enquanto Marie vai fazer compras no mercado local. O ambiente descontraído cria plácida atmosfera evocativa da ilusória bonança que precede a brutal irrupção da tsunami. O súbito recuo das águas é a pré-versão marinha dessa enganosa pausa.
Com a vista barrada pelo casario, o maremoto se anuncia por ominosa e confusa sucessão de estrondos, que continuam a crescer, defronte dos inquietos e receosos olhares da gente transida por um pressentido mistério que se acha na iminência do horror da própria revelação.
Muito bem construída toda a cena subsequente da tsunami que invade as ruelas apinhadas de turistas a serem carregados pela torrente. Marie tenta fugir como os demais, é alcançada, busca navegar naquelas águas turbulentas até sofrer concussão na nuca, perder os sentidos e entrar em outra aparente dimensão, povoada de vultos e sombras esguias, marcada por sereno e atemporal silêncio. Mais adiante, em trapiche, populares tentam ressuscitá-la, a princípio debalde, a ponto de ser deixada como morta por afogamento.
De repente, no entanto, Marie recobra a consciência, e é ajudada a livrar-se da água do mar. De volta a Paris, o retorno ao trabalho de apresentadora televisiva não transcorre da forma de costume. Ela está diferente, insegura nas entrevistas, o que leva Didier a convencê-la a tomar licença para se recuperar. A idéia de preparar um livro sobre François Mitterrand a atrai e tem o apoio de editor (Jean-Yves Berthelot).
Em São Francisco, George Lonnegan (Matt Damon) aceita com relutância o pedido do irmão Billy (Jay Mohr) para que faça contato mediúnico para um cliente rico, o grego-americano Christos (Richard Kind). Ao invés de considerar a sua capacidade com um dom, George a entende como maldição. Através do contato com as mãos, ele repete o que lhe diz a esposa morta de Christos. Todos os dados de George batem, com exceção da palavra June, a que Christos diz não atinar com o sentido da mensagem da esposa (mais tarde ele confessará para o irmão que é o nome da enfermeira, de que posteriormente se tornaria amante).
Apesar de sua promessa de reserva, o cliente rico dá com a lingua nos dentes, e outras pessoas procuram George. Ele, contudo, se recusa a continuar, a despeito das instâncias de Billy, e prefere trabalhar como operário em empresa portuária, malgrado o desaponto do irmão que obviamente deseja explorar comercialmente os seus dotes mediúnicos.
A parte final do tríptico se abre em Londres. São dois gêmeos, Marcus e Jason (Frankie e George McLaren) que tudo fazem para manter-se na companhia da mãe, Jackie (Lindsey Marshal), de quem gostam, apesar de ser alcoólatra e viciada em heroína. Assim, os gêmeos logram com dificuldade enganar os assistentes sociais, quanto ao real estado da genitora.
Em função disso, o gêmeo mais velho (em minutos) Jason vai à farmácia para coletar pílulas que servem para reverter a prática da heroína. Colhendo instruções do irmão Marcus pelo celular, Jason desperta a cobiça de uma gang de adolescentes. Tentando fugir, Jason morre atropelado por um caminhão.
A morte do irmão mais velho é ruinosa para Marcus, a ele muito apegado. A mãe se vê forçada a ceder a guarda do filho para uma adoção temporária, o que Marcus não aceita, mantendo-se distante do casal que em vão se empenha em angariar-lhe a confiança.
Querendo obter a orientação do irmão morto, Marcus empreende verdadeira via crucis por diversos supostos médiuns. As imprecisões das respostas e as falsas indicações não o dissuadem de continuar na sua busca.
Por sua vez, em Paris, Marie depois de visita a clínica de doentes terminais na Suiça, convence a diretora a lhe emprestar material para o seu livro, que de biografia crítica de Mitterrand passou a estudo sobre experiências além da vida.
O seu editor, no entanto, não se reconcilia com a mudança radical, que não se adequaria à sua linha de publicações. Mais tarde, telefona para Marie e lhe transmite endereços de editoras americanas especializadas.
George entra em curso noturno de culinária italiana, como uma diversificação para o seu trabalho de operário. Como parceira de aprendizado, surge Melanie (Bryce Dallas). O chef tem a ideia de que os parceiros, alternadamente, se coloquem vendas e adivinhem os ingredientes que o companheiro lhe passa numa colherzinha. Tal gesto pode ser visto como um símile do esforço da mente de identificar o pensamento alheio.
O relacionamento entre os dois jovens, George e Melanie, acena estreitar-se. A moça vai ao apartamento de George e não tarda em descobrir-lhe os dotes mediúnicos. Malgrado a sua relutância, ele acaba por aceder a uma comunicação. Aparecem mensagens da irmã e da mãe, ambas mortas. No final, o pai intervém para pedir perdão do abuso da filha na infância. Como George previra, o choque é demasiado para Melanie que dele se afasta porque ele sabe demasiado sobre a sua existência. Melanie tampouco continua nas aulas de culinária, e George é despedido da empresa portuária, vítima de reajuste determinado pela crise.
Surpreendentemente, George contraria o irmão Billy, que se propusera montar um consultório mediúnico, para explorar os dotes de George. Este prefere viajar para Londres, entre outras coisas para conhecer melhor Dickens, que tanto admira (como distração, costuma ouvir passagens lidas de livros do escritor inglês).
Os três novelos do roteiro de Peter Morgan vão entrelaçar-se na capital inglesa. Marcus – que furtara duzentas libras de seus pais adotivos para bancar a busca de médiuns que lhe possibilitassem falar com o irmão – se defronta com George Lonnegan a quem reconhece pelo site na internet. George, contudo, se recusa a qualquer consulta. O jovem não se desencoraja com negativas e segue o médium por toda a parte.
George assiste comovido à leitura na London Book Fair[1] de história de Charles Dickens por Derek Jacobi, a quem, posteriormente, impressiona favoravelmente ao adquirir o DVD autografado. Sempre com Marcus nos calcanhares, George vai à sessão de autógrafos do novo livro de Marie Lelay sobre as experiências terminais. Ao tocar-lhe a mão, George colhe a imagem do corpo inerte de Marie carregado pela tsunami. Há uma instantânea química entre o casal Marie – George, em que a parapsicologia semelha entrar menos do que as artes hollywoodianas.
George, no entanto, por causa da insistência de Marcus perde o contato com Marie nessa feira. Irritado, se recolhe ao próprio hotel. Pela janela, vê na calçada a hirta figura do menino Marcus, inabalável sentinela apesar do frio.
Por fim, George se apieda de Marcus e o traz para seu apartamento. Na sessão mediúnica, a atitude de George e o que lhe vai transmitindo acerca do irmão Jason se espelha na fisionomia de Marcus, por fim livre dos impostores e picaretas, no crescente deleite de confirmar a realidade do contato com o irmão.
Convencido pela evidência da autenticidade da mensagem, Marcus acata contrafeito que o irmão dele se vá dissociar. Já é grande bastante para cuidar de si mesmo. A gratidão de Marcus irá se manifestar de forma peculiar para George.
Mais tarde, o menino telefona para dizer-lhe onde está hospedada Marie, eis que captara que algo poderia rolar entre os dois. Mais tarde, a mãe reaparece e se reune com o filho.
George, incrédulo a princípio, por fim se convence, e vai ao hotel de Marie, para quem deixa um longo bilhete. Esta, ao regressar, passa do ar intrigado inicial a animada expressão de comunhão de pensamentos.
O mediúnico George prevê na sua fantasia visual o abraço e o beijo de duas almas irmãs na mediunidade. Dessarte, nas pinceladas do diretor se pressagia o que se delineia como acontecimento futuro.
Com a reunião do filho Marcus com a mãe, alegadamente em recuperação, os fios dão a impressão de reatar-se. E na mesma forma abrupta em que tudo surgira, o filme de Clint Eastwood termina.
[1] Feira do Livro de Londres
sábado, 15 de janeiro de 2011
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