terça-feira, 4 de janeiro de 2011

A Miragem do Bipartidarismo

Já se escreveu bastante neste blog acerca da ilusão do Presidente Barack Obama sobre a viabilidade do bipartidarismo nos Estados Unidos de hoje. Que esse espírito tenha prevalecido nos tempos de Roosevelt e de Lyndon Johnson, infelizmente não constitui válida premissa para os dias atuais.
Cresceu o antagonismo entre os Partidos Republicano e Democrata. Se considerarmos os segmentos que formam a base dos dois grêmios nos Estados Unidos, é dado relevante desta característica de contraposição ideológica a presente formação da representação do G.O.P. Nas últimas décadas, desde que o Sul conservador e democrata mudou a sua posição, trocando o Partido Democrata pelo Republicano, a fisionomia do mapa partidário nos EUA mudou substancialmente. Os estados do Sul, tradicionalmente democratas pelos laços remanescentes da Guerra de Secessão, trocaram de lado, por força da postura pró-ativa dos democratas no que concerne aos direitos civis e, em especial, a realização do ‘sonho’de Martin Luther King, quanto à igualdade racial.
Por isso, os ditos estados vermelhos, ou republicanos, tiveram um aumento sensivel, em prejuízo dos azuis, ou democratas[1]. A tal redistribuição de bases político-partidárias, afigura-se necessário acrescentar o fator de radicalização trazido pelos evangélicos que não só reforçaram, senão enrijeceram as componentes ideológicas do velho partido de Abraham Lincoln.
Como todos os processos do gênero, assinalou-se por lenta e gradual formação, em que o direitismo extremista do grupo de John Birch, da segunda metade do século XX conduziu à participação de pregadores evangélicos e, ao cabo, à entrada em cena de demagogos como Rush Limbaugh, Sean Hannity e Glenn Beck. Constituem uma espécie de linha auxiliar do G.O.P., posto que a sua afinidade ideológica nada tenha a ver com eventual subordinação.
Esta mesma direita, que lá é denominada libertária, e na verdade se marca por entranhado reacionarismo, tem no seu populismo demagógico várias gradações intelectuais. A propósito, nessa constelação peculiar, o movimento Tea Party, de que a ex-candidata a Vice-Presidente Sarah Palin é a atual musa, representa outra formação (e complicador) da raivosa direita americana.
A todas as citadas facções e demagogos (atuantes estes não só nas intermináveis arengas no rádio, como Limbaugh, ou na rede Fox, como Glenn Beck) une a comum ojeriza contra tudo o que se filie ou se assemelhe ao partido Democrata, e a seus militantes, os abominados liberais[2]. Por ser um sentimento quase visceral – decerto pouco tem a ver com a intelectualidade – ojeriza se me afigura preferível a ódio, na designação da causa do antagonismo.
Não será difícil, por conseguinte, entender que em função destas correntes na direita norte-americana, dois fenômenos hiper-estruturais se produziram tanto na composição da representação republicana, quanto no seu comportamento com relação ao outro grande partido estadunidense.
Por um lado, a antiga ala moderada do G.O.P. é um remanescente fossilizado da sua pretérita pujança. Aos Jim DeMint (Car.do Sul/Rep) e John Boehner (Ohio/Rep. e futuro Speaker da Casa de Representantes), a antiga corrente moderada não mais apresenta expoentes do peso de um Nelson Rockefeller[3] ou de um John Lindsay[4]. Sobrevivem no partido sombras do passado, como as senadoras republicanas da costa leste, que as realidades do poder transformaram em simples instrumentos dos desígnios da maioria evangélica.
Tendo presentes as considerações acima, o antigo bipartidarismo, expressão de um caráter amistoso e até fraternal que se associa a uma corporação de políticos, diferenciados por plataformas partidárias, porém congraçados por partilharem de um mesmo espiríto patriótico, não é mais encontrável na colina do Capitólio.
Tudo o mais será decorrência. A eleição de maioria republicana para a Casa dos Representantes ora se traduz em esforço concentrado para repelir – talvez a palavra mais apropriada seja destruir – a Lei da Reforma Sanitária. O G.O.P. não conta, é verdade, com maioria no Senado. No entanto, como a vantagem democrata na Câmara Alta encolheu, há devotados membros do partido republicano que não descontam a possibilidade de ou anular, ou estropiar essa grande reforma, ambicionada por quase um século. Fora do contexto americano, não será fácil entender as razões que motivam esta sanha contra reforma que se propõe aumentar o número de americanos a serem cobertos pela assistência médica. Quiçá por que as causas pouca parentela tenham com a racionalidade. No fim de contas, o visceral não sói ser associado à intelectualidade.
Diante do espetáculo de facciosismo que se anuncia – com outras muitas e previsíveis sequelas, poucas delas agradáveis – a pergunta que teima em perdurar é a até quando, ó Obama, persistirás na contemplação de passado personagem, sem dúvida de saudosa memória, mas hoje definitivamente morto, nas terras de Tio Sam – o Bipartidarismo político !

( Fonte: International Herald Tribune )

[1] Conforme se verifica, as cores partidárias nos EUA não guardam as conotações de outros continentes. Será outra indicação da singularidade da Superpotência.
[2] Liberals nos EUA não têm a significação do liberal europeu. O termo, conquanto não exclua os atributos desses liberais europeus, lhes enfatiza sobretudo o caráter progressista e supostamente gastador.
[3] Nelson Rockefeller (1908-1979), prócer da ala liberal republicana, foi o 41 Vice-Presidente americano, e 49 governador do estado de New York.
[4] John Lindsay (1921-2000), também prócer da ala liberal republicana, foi congressista e prefeito de New York por dois mandatos.

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