O Brasil pode reivindicar uma discutível nova classificação jurídica: de acordo com o entendimento popular existem leis que ‘pegam’ e outras que não. Quando se diz que uma certa lei ‘não pegou’, esta avaliação não contém nenhum valor jurídico objetivo, como se seria o caso se tivesse sido vetada, revogada por outra lei ou declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.
Nada disso. O que se quer dizer é que a dita lei não está sendo aplicada, porque não foi considerada cabível. Os motivos podem ser os mais variáveis, mas o que interessa no caso é o consenso da sociedade que prefere considerá-la como não-existente na prática. Sendo norma escrita, formalmente a causa de sua suposta não-validade não tem eficácia jurídica. Na prática, no entanto, esse ‘juízo social’ pode até funcionar, sobretudo para leizinhas irrelevantes propostas por leguleios em plena atividade.
Desejo, no entanto, referir-me a uma outra categoria também informal de lei, que, apesar de não originar-se de projetos legislativos ou de medidas provisórias, de não serem deliberadas e votadas pelas colendas assembleias, nem sancionadas pelo nível executivo correspondente, tais leis, malgrado não gravadas no solene mármore ático, elas não só vigoram, mas tornam-se pauta normativa de amplo e difuso comportamento social.
Como o leitor há de presumir desejo referir-me à chamada ‘lei de Gerson’. Em anúncio de cigarro de 1976, o meia da seleção dizia: ‘gosto de levar vantagem em tudo’.
Hoje, mesmo que a marca do cigarro esteja esquecida e esse tipo de publicidade formalmente proibido bem como o próprio foco do anúncio se haja dissociado do conceito emitido, não é que a citada lei de Gerson continua com validade plena, sendo acatada de forma generalizada por corporações inteiras, por largos extratos e sobretudo por personalidades destacadas, cuja conduta é suscetível de servir de exemplo a outras camadas da sociedade, que não desfrutam de tal significância e visibilidade ?
Houve tempo em que o cidadão comum, o popular, podia orgulhar-se do comportamento de seus colegiados e de seus representantes, pela sua ‘gravitas’[1] e dignidade no que concerne ao bem e à coisa pública.
Hoje em dia quem poderá afirmar que a população se sente bem representada e tem em alta conta o comportamento de deputados e senadores ? Os exemplos em contrário – e não só com respeito a legisladores – são demasiado abundantes para não confranger a opinião pública.
Quem terá esquecido o deprimente espetáculo da concessão de aumento generalizado, no espaço de uma única jornada, por Câmara e Senado, a deputados, senadores, presidente da república, ministros de estado e ministros do Supremo Tribunal Federal? E todos equalizados, como se o ministro, demissível ad nutum pelo presidente, possa ter a mesma remuneração do Chefe da Nação ? Juntos todos, em um mesmo cesto, deputados, senadores e os ministros do STF, já regiamente pagos, e que soem ser os primeiros a reivindicar o aumento anual.
E, sem embargo, esses anti-exemplos não param por aí. Não me reporto apenas à inchação de Senado e Câmara, com pencas de diretores e de funcionários agraciados com salários que não assinalam o mérito mas o privilégio. Na inextinguível lista de prebendas e de vantagens absurdas, repontam agora, recuperadas do limbo em que convenientemente prosperavam, as iníquas e inconstitucionais aposentadorias de governadores de estado.
Muitos – espero ao menos que não todos – para elas voltam, pressurosos em postulá-las, até mesmo os que diziam haver feito voto de pobreza. Todos as postulam, não recuando diante de nenhum embaraço, como o fato de a governança datar de vinte anos atrás, ou a vantagem dizer respeito a um curto interinato, de uma semana ou dez dias, que é julgado suficiente para fundamentar a tal pensão.
Pouco interessa que não hajam contribuído com um centavo para a dita aposentadoria, se bem que o comum mortal careceria de pesadas contribuições para ao cabo de sua ativa existência funcional ter direito à tal pensão pela Previdência.
Lillian Hellman[2], no seu livro de memórias “Scoundrel Time” sobre a época do denuncismo ao tempo do Senador Joseph McCarthy, disse que se vivia então “in scoundrel time”, i.e., no tempo dos patifes.
Não sei se a designação seria válida para cá, mas uma coisa me parece certa: a validade da lei de Gerson continua indiscutível.
[1] Palavra latina que assinala a distinção e a circunspecção associadas à dignidade de posto e encargo.
[2] Lillian Hellman, escritora e dramaturga (1905-1984).
sexta-feira, 21 de janeiro de 2011
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