Com o definhamento e saída formal de cena do poder militar em março de 1985, a redemocratização, encetada por negociação política a que se esforçara em presidir o último general-presidente, João Figueiredo, conduziu à eleição indireta de Tancredo Neves, a posse do Vice José Sarney, pelo trágico impedimento do político mineiro, e os posteriores comícios para a Assembleia Constituinte, cujo trabalho culmina com a Constituição de 5 de outubro de 1988, a Constituição Cidadã, consoante a chamou o seu Presidente Ulysses Guimarães.
Ao contrário de nossos irmãos ibero-americanos, aqui os processos revolucionários não costumam ser sangrentos, eis que sóem concluir-se por consenso, em que o lado perdedor reconhece a própria desvantagem e por isso a negociação tende a prevalecer. Os vencidos na refrega, ou conservam boa parte da situação anterior, ou pelo menos dela mantêm as caracteristicas essenciais.
A superação dos mais de vinte anos de ditadura militar não foi diferente. As Forças Armadas – especialmente o Exército, o mais forte de seus componentes – retornaram aos quartéis, mas guardaram os principais privilégios. Formalmente subordinados ao poder civil, a autonomia da corporação foi mantida, a princípio por ministros militares, e a confirmação de concessões constitucionais, como a existência da justiça castrense ( a nível de tribunal superior ). Por outro lado, desse estado de coisas é representativa a chamada Lei da Anistia que, na prática, concedeu o mesmo status a torturadores e torturados, aos agentes repressores e aos guerrilheiros urbanos ou não. Se a dita legislação representou progresso, nele havia fundamental desequilíbrio.
Então o poder militar e seus acólitos ainda dispunha da vis indispensável para impor uma situação. A anístia aos perseguidos políticos e aos banidos pelo movimento de 31 de março representou decerto conquista importante. Não restabelecia, no entanto, a paridade entre os dois campos, permitindo que os torturadores e assassinos fossem assemelhados aos revolucionários. Em outras palavras, se assegurava aos infratores dos direitos humanos a mesma situação de privilégio que tinham gozado até então.
Posteriormente, o progresso do direito internacional humanitário tem mostrado o acerto dos países que através de investigações sérias do respectivo passado e de comissões de verdade tem avançado nesse íngreme caminho. Neste aspecto, a recente decisão do Supremo convalidando a Lei da Anístia, nos termos desiguais dos anos oitenta, constitui triste confirmação da recusa no Brasil da elite dominante de reconhecer o progresso jurídico que torna imprescritíveis os crimes contra os direitos humanos – e em especial a tortura. Recusa-se a acatar determinações da Corte Interamericana de Direitos Humanos, refugiando-se em pretextos de soberania que não cabem, eis que tal tratado foi formalmente reconhecido pelo nosso Congresso, o que, em relação a qualquer disposição contrária, lhe assegura a validade plena.
Importa, no entanto, não perder de vista que a sentença do Supremo – que teve, para sua honra, votos discrepantes – representa apenas uma faceta de problema que é da sociedade brasileira e, em particular, da elite dominante.
No capítulo, o contraste com muitos dos países sul-americanos é confrangedor. Como já me reportei à questão, basta assinalar como exemplo o comportamento da sociedade argentina. Desde o desastre das Malvinas, e o governo do presidente Raul Alfonsin, os dirigentes portenhos não tem hesitado em colocar os líderes militares e antigos ditadores no banco dos réus. Se o embate lá fora mais sangrento, a atitude dos políticos argentinos – com exceção de Carlos Menem – nunca foi timorata, nem contemporizadora. Afirmou-se a primazia do poder civil de modo inquestionável, seja na supressão de foros militares, seja na indiciação e no ajuizamento dos responsáveis pelos ‘desaparecimentos’ e por tantos outros crimes contra a Humanidade.
A deplorável atitude do Supremo Tribunal Federal que semelha atribuir maior força jurídica à capenga Lei da Anístia, promulgada em época ainda marcada pela preponderância (declinante, é verdade, mas forte o bastante para assegurar uma legislação iníqua) do poder militar, na verdade, como tenho asseverado neste blog corresponde a característica da sociedade brasileira. Mascarada como de composição e de preferência pelas soluções pacíficas, esta via não é tão simples nem tão inocente quanto se apregoa.
É verdade que o brasileiro – em contraposição a nossos irmãos ibero-americanos – tem predileção pelas soluções consensuais. Se estamos diante de feição positiva da nacionalidade, não devemos, contudo, extrapolá-la para a inação e passiva aceitação de situações eivadas de defeitos e vícios que as tornam inaceitáveis.
A elite dominante no Brasil – tendo à frente a sua expressão política – costuma ter um comportamento permissivo e mesmo ultracauteloso com respeito ao chamado poder limitar. Essa atitude, em que a excessiva prudência pode causar a impressão de renúncia ao próprio direito soberano, decorrente que é da expressão da vontade do Povo, constitui desafortunadamente a regra e não a exceção na conduta de nossos representantes constitucionais.
Tem sido muito raros em nosso país os Epitácio Pessoa. Este Presidente da República impôs aos militares dois ministros civis para as duas Pastas – a da Guerra e a da Marinha – e o fez a despeito das constantes visitas de delegações castrenses, que buscavam demovê-lo do intento. Os dois Ministros se assinalariam pelo mérito, mas a exceção não induziria os sucessores a imitar Epitácio.
Mal surge o governo de Dilma Rousseff – que foi presa, torturada e julgada – e dois episódios se apressam em sublinhar esta lamentável excepcionalidade de que goza o poder castrense. Na Academia Militar das Agulhas Negras, os cadetes formam a Turma Garrastazu Médici; e o novo Ministro da Segurança Institucional, general José Elito Siqueira comparece com a sua frase “os desaparecidos são história da nação, de que não temos que nos envergonhar ou nos vangloriar”.
A Presidenta cobrou explicações do general José Elito e recebeu, segundo se afiança, o pedido de desculpas. Será o bastante, ou estaria certo Clovis Rossi em exigir-lhe a demissão ? E quanto à provocação das Agulhas Negras ?
No meu modesto entender, são epifenômenos, que aparecem aqui e ali em função da falta de assunção pelo Poder Civil de suas reais prerrogativas. Sem dúvida, será necessário um dia tirar os guizos do gato. Para este primeiro ato, os representantes civis do poder constituído, em suas esferas política, legislativa e judiciária carecerão de um único atributo. Como é de coragem cívica que se trata, seria aconselhável abeberar-se na existência de Epitácio Pessoa[1]. E tenham presente que esse político da República Velha viveu em época bem mais conturbada, e sem as atuais constrições aos golpes militares e pronunciamientos.
( Fonte: Folha de S. Paulo )
1] Epitácio da Silva Pessoa, estadista brasileiro (Umbuzeiro, Paraíba 1865 – Petrópolis, RJ 1942), Presidente da República de 1919 a 1922.
sexta-feira, 7 de janeiro de 2011
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