O tempo enfarruscado na saída da Granja do Torto, seguido dos aguaceiros habituais na longa estação chuvosa em Brasília, não repetiam o cenário da posse de Lula em 2003. Mesmo depois da catedral, em que Dilma teve de embarcar no Rolls Royce presidencial com a capota montada tornava discretos os seus acenos aos grupos de populares que enfrentavam a chuva. Quase furtivos, em nada recordavam os gestos largos de Luiz Inácio Lula da Silva no seu banho de multidão de 1º de janeiro de 2003.
A sessão no Congresso começou de forma bem brasileira. Enfrentando uma outra multidão, essa de parlamentares, ela soube atravessar aquele caudal humano, feito de gente generosa com presidentes em início de mandato, que não pode sopitar todo o ardor que o poder novo lhes suscita. Dilma distribuíu beijinhos e afagos a todos, com natural simpatia, até alcançar as curuis da mesa diretora, onde sob a batuta do Senador José Sarney prestou o juramento da posse nas suas altas funções. Fê-lo com emoção sincera, o que terá assombrado a alguns, mas na autenticidade contagiante dos grandes compromissos, principiou quase subrepticiamente a captar o favor das atenções gerais.
Seguiu-se o discurso para os congressistas e a nação brasileira. Quarenta minutos em que desdobrou o seu programa de ação. Espantou os céticos profissionais, eis que as suas palavras não se conformavam às alocuções usuais, em que promessas e vazia retórica se sucedem, como se fossem ecos em monótona repetição a se espalharem por largas câmaras de rochas impassíveis.
Dilma Rousseff costurou na alocução a sua ideia do Brasil e o que pretende realizar nos quatro anos vindouros. Talvez haja aí colocado um número excessivo de questões e projetos. Todavia, se nos detivermos um momento, iremos concordar com a generalidade de seu propósito.
É dificil buscar resumir-lhe a fala, não porque desconchavada, mas pelo singelo fato de que ao desfiar a respectiva linha de ação na presidência Dilma nos pregou a peça de somente apontar problemas e situações relevantes. Careço de dizer que não será fácil podar-lhe este trecho ou aquele, a exemplo das verbosas orações que costumam ressoar naquele vasto recinto.
Por isso o ouvinte de boa vontade se descobrirá induzido a torcer para que a Presidente consiga cumprir metade ou um terço de tudo aquilo que se propõe fazer no quadriênio. Será então mais do que digna continuadora da obra do antecessor, pois se lograr completar tal parcela disporá de títulos bastantes para ingressar no exclusivo grêmio dos grandes mandatários.
Estarei acaso dando a nossa presidenta, levado por crédulo impulso, louvores desmedidos ? Gostaria, na verdade, que assim não fosse. O erro é próprio dos humanos, reza o lugar comum. Não posso, portanto, descontar tal possibilidade.
Para que o leitor do blog possa dar-se conta de o que me leva a acreditar nos propósitos de Dilma Rousseff pediria licença para tentar resumir o que ouvi na tarde de primeiro de janeiro. Dada a extensão, os lapsos hão de ser inevitáveis. Contudo, haja vista o número de temas, a própria quantidade vem em auxílio de minha tese.
Por duas vezes, pelo menos, Dilma cedeu à emoção. Com a voz embargada, afirmou que desejava ser a presidenta de todos os brasileiros. Em outra ocasião, no testemunho aos companheiros de lutas de sua geração que ficaram pelo caminho, tampouco deixou dúvida quanto à sinceridade do sentimento. Desse tempo de chumbo, não guarda arrependimento, mas tampouco ressentimento ou rancor.
Os aplausos do público igualmente traziam a força da espontânea concordância quando ela declarou que preferia o barulho da imprensa ao silêncio das ditaduras. São palavras alvissareiras, como é o gesto de estender a mão não só aos companheiros, mas também à oposição, àqueles que não a acompanharam até aqui. Não haverá discriminação ou compadrio.
A democracia brasileira, que não é mais a tenra plantinha de que nos fala Octavio Mangabeira, não dispensa esses cuidados. Faz-lhe bem escutar tais desígnios, desde que correspondam à realidade. A democracia prescinde de bom grado daqueles que demonizam o adversário político, e o transformam em inimigo.
No início da locução, Dilma se reportou a duas reformas, que reputa urgentes e indispensáveis: a política e a tributária. Lembrou a necessidade de que os partidos políticos tenham mais consistência ideológica. Sensata proposição, mas será que os aplausos da assembleia são genuinos ou pro forma ?
Por outro lado, quando a presidente mencionou outra necessidade, a do combate à corrupção, o silêncio circunstante gritou alto na larga sala que Niemeyer desenhara para o palácio dos representantes do povo.
Dilma se referiu outrossim a outras metas urgentes, tendentes à consolidação da obra social do Presidente Lula. Avulta nesse sentido o compromisso da luta contra a miséria, com a promessa da erradicação da pobreza extrema. Nesse sentido, é prioridade de seu governo dar melhores e mais humanas condições aos brasileiros e brasileiras que hoje ainda convivem com a fome e a falta de uma moradia digna.
O seu discurso de posse traçou um amplo quadro da sociedade nacional, e a prioridade de enfrentar e sanar os déficits respectivos na educação, saúde e segurança. Ressaltou a necessidade de dar melhores condições aos professores: “Só existirá ensino de qualidade se o professor e a professora forem tratados como as verdadeiras autoridades da educação, com formação continuada, e sólido comprometimento dos professores e da sociedade com a educação das crianças e dos jovens.” Também aludiu às urgências na saúde, com a devida distribuição de médicos e pessoal sanitário para o condigno atendimento da população.
Mencionou o meio ambiente, a necessidade de preservar as nossas florestas. “Considero uma missão sagrada do Brasil a de mostrar ao mundo que é possível um país crescer aceleradamente sem destruir o meio ambiente. Fomos e seremos os campeões mundiais de energia limpa. (...) O etanol, as fontes de energias hídricas terão um grande incentivo, assim como as fontes alternativas: a biomassa, as eólica e solar. O Brasil continuará também priorizando a preservação das reservas naturais e de suas imensas florestas. Nossa política ambiental favorecerá nossa ação nos fóruns multilaterais, mas o Brasil não condicionará a sua ação ambiental ao sucesso e ao cumprimento por terceiros, de acordos internacionais. Defender o equilíbrio ambiental do planeta é um dos nossos compromissos nacionais mais universais.”
Dilma, no capítulo da política externa, de que se ocupou em forma necessariamente genérica, disse que “nossa política externa estará baseada nos valores clássicos da tradição diplomática brasileira, promoção da paz, respeito ao princípio da não-intervenção, defesa dos direitos humanos e fortalecimento do multilateralismo.”
Os grandes objetivos da política externa de estado foram reiterados, como o compromisso contra a fome e a miséria no fundo, a prioridade do relacionamento com os vizinhos sul-americanos, nossos irmãos da América Latina e do Caribe, com os irmãos africanos e com os povos do Oriente Médio e os países asiáticos. “Preservaremos e aprofundaremos o relacionamento com os Estados Unidos e com a União Europeia.” Dar-se-á grande atenção aos países emergentes,e à nossa região “dando consistência cada vez maior ao Mercosul e à Unasul.”
Ao realçar os progressos economico-financeiros realizados, com o fim da dependência do FMI e o novo patamar do Brasil no mundo, assinalou a necessidade do perene combate à inflação, que definiu de ‘praga’.
Na sua intervenção, Dilma citou por duas vezes o ‘poeta de minha terra’. Dessa forma livre, ela se reportou ao cronista das veredas e dos grandes sertões, que foi João Guimarães Rosa, sublinhando que é preciso coragem para a tarefa de governar.
Quanto ao Presidente Lula, Dilma se reportou seja na alocução do Congresso, seja de forma mais ampla, no discurso no parlatório do Palácio do Planalto, já envergando a faixa presidencial que, com a ajuda de D. Marisa, lhe foi passada pelo antecessor, com a previsível comoção.
O Vice-Presidente José Alencar, que batalha contra um câncer há vários anos e se acha internado no hospital Sirio-Líbanês, recebeu elogios comovidos nos dois discursos da presidenta.
Concluída a cerimônia dos cumprimentos dos chefes de estado e de governo, e das missões estrangeiras, Dilma Rousseff acompanhou o ex-presidente Lula e Da. Marisa Letícia até a viatura presidencial, que levaria o casal para o aeroporto.
Lula não poderia ocultar o quanto lhe afetou o fim do segundo mandato e a simbólica passagem da faixa presidencial. É o pesado preço que a democracia cobra, após prodigar a seus favoritos com as benesses e atenções que o poder reserva.
Quanto à Dilma e a Lula, o futuro dirá duas coisas pertinentes para o momento presente: até que ponto o discurso da posse terá significado na validação do mandato da nova presidente, e em que medida o ex-presidente se acomodará com a comum existência em São Bernardo do Campo, na companhia de D. Marisa, fiel arrimo de todas as horas.
(Fontes: O Globo e Folha de S. Paulo)
domingo, 2 de janeiro de 2011
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário