domingo, 9 de janeiro de 2011

Colcha de Retalhos LXV

A Intolerância Religiosa

Este fenômeno – que sempre esteve presente na história da Humanidade – atravessou um longo período no qual mostrava um viés no sentido senão do desaparecimento, pelo menos de manifestações não-violentas, em que o preconceito se substituía às formas mais agressivas da coação e da ação física.
Obviamente, qualquer expressão desta intolerância é inadmissível, sobretudo por atentar contra uma das liberdades fundamentais do ser humano, que é o seu direito de professar o credo religioso de sua escolha. Essa liberdade básica pressupõe igualmente o direito de não professar nenhum credo. No Ocidente, tais posições demandaram um longo progresso, hoje felizmente estabelecido e em larga medida inconteste.
Por outro lado, o Oriente,durante tanto tempo visto no Ocidente através das lentes que nos descreve Edward W. Said em sua obra ‘Orientalismo[1], ora registra retomada dos próprios valores, em atitude mais afirmativa, no que concerne em especial à respectiva religião islâmica.
Em todo movimento desse gênero – e na religião islâmica, em particular, nas suas duas princípais seitas – a sunita e a xiita – é grande a interação entre a expressão do culto e a atuação política. Nesse contexto, teve grande importância na renovação dos valores islâmicos a presença do imã nas mesquitas, através de suas pregações. A sexta-feira é o dia santo no credo muçulmano. Nesse quadro, as intervenções dos imãs podem revestir relevância política, a ponto de as homilias dos mais renomados circularem em cassetes na comunidade dos fiéis.
Na casa do Senhor há muitas mansões. Não será diverso no mundo islâmico. Se no espaço do cristianismo, há uma crescente tendência para a secularização, e menor influência em geral dos credos respectivos, o islamismo se caracteriza por grande efervescência doutrinária e presença religiosa que em muitos países exerce condicionamento bastante mais acentuado na conduta dos fiéis. A atual fase do Islam se diferencia das duas outras grandes religiões – o cristianismo e o judaismo – por um caráter mais ativo e mais presente na sua respectiva comunidade, talvez pela circunstância de que é a mais nova dentre elas.
Se existem distinções nos diversos países em que o islamismo é o credo predominante, assinala-se, mesmo naqueles mais caracterizados pela tolerância inter-religiosa – como, v.g., a Turquia – um movimento de reafirmação dos valores fundamentais, dentro de tendência conservadora.
No passado, nos tempos áureos do poder islâmico dos Sultões de Istambul – a antiga Constantinopla dos imperadores bizantinos – sob a égide do Profeta Maomé conviviam pacificamente com os muçulmanos as comunidades cristã-ortodoxa e judaica – as chamadas religiões do Livro, eis que judaismo e cristianismo são mencionados como cultos antecessores no Corão. Com a decadência da Sublime Porta[2], a população de origem grego-ortodoxa, sob a liderança do governo helênico de Atenas, apoiou um intento de fragmentação da Turquia, com base na região de Smirna. Buscou-se restabelecer a soberania grega em parte da Anatólia e na própria Constantinopla. Para os gregos, a que faltou a necessária unidade na hora do grande desafio, tudo foi terminar na chamada catástrofe[3], a decisiva derrota do exército helênico sob o ataque dos comandados de Mustafá Kemal, o futuro Ataturk. Com isso, a bimilenar colonização da Asia Menor (e da Anatólia) pela etnia grega cessou, ficando na Turquia uma tolerada presença residual da comunidade cristã-ortodoxa.
A obra de modernização – e de laicização – do antigo estado otomano foi empreendida por Mustafá Kemal, que procurou separar a religião do poder político.Essa orientação vem sendo agora objeto de tentativa de revisão, através do governo pró-islâmico do primeiro ministro Recep Tayyp Erdogan (Partido da Justiça), a que se opõe notadamente o Partido Republicano do Povo, que defende os valores propugnados pelo Ataturk.
Se houve na Turquia episódios isolados de violência contra cristãos (como o passado assassínio de um bispo católico), a situação no Egito pode ser considerada mais preocupante. Lá existe substancial minoria cristã-copta – os coptas tem uma participação muito atuante na vida política egípcia – Boutros-Ghali, o ex-Secretário Geral das Nações Unidas, ocupou importantes postos no governo de Hosni Mubarak.
Recente atentado contra igreja copta em Alexandria, feito por um homem-bomba na véspera do Ano Novo, que matou cerca de 21 fiéis.
O atentado contra a igreja copta no Egito se assemelha ao recente ataque contra a igreja católica do rito caldeu, no Iraque. Há sensíveis diferenças nessas duas manifestações de intolerância extrema, no entanto. Enquanto no Iraque a comunidade cristã-caldeia é percentualmente bastante menor em relação ao credo islâmico naquele país (dividido entre maioria de xiitas e minoria de sunitas), o que torna a sua milenar permanência na terra do Tigre e do Eufrates deveras precária[4], no Egito a situação é bem diversa. A estabilidade do país depende do bom entendimento entre a maioria muçulmana e a comunidade cristã, eis que a minoria copta no país do Nilo corresponde a cerca de doze por cento da população egípcia.
A investida contra o templo em Alexandria aumentou o descontentamento entre os coptas, dada a unilateralidade da política religiosa de Mubarak, que favorece a construção de mesquitas e até impede a restauração de igrejas coptas. A incerteza cresce pela avançada idade e frágil saúde do presidente. Com efeito, se especula sobre a sua eventual candidatura a um sexto mandato como presidente – Mubarak sucedeu ao assassinado Sadat, em princípios da década de oitenta -, e o que aconteceria no caso de seu desaparecimento.
O islamismo fundamentalista tem crescido no Egito, e se teme a assunção de forças mais radicais, com a potencial repercussão sobre a estabilidade nacional. No entanto, o exército é havido como garante de uma situação, dentro do paradigma egípcio de moderação e boas relações entre as duas principais religiões.
Nesse sentido, é de esperar-se que o maior país do mundo árabe, e cuja história se afigura como uma das mais longas e expressivas, possa continuar a manter o seu papel símbolo de modelo de coexistência pacífica entre religiões e respectivas comunidades.

Israel e a Palestina

A Palestina com os seus territórios ocupados constitui talvez o ur-problem[5] da atualidade, eis que a injustiça contra o povo palestino – a qual perdura desde a ocupação dos territórios de antiga administração jordaniana, ao ensejo da chamada guerra dos Seis Dias[6] – não só persiste, como se agrava com a política israelense de disseminação de assentamentos ilegais de colonos, e o seu consequente avanço sobre terras e cultivos palestinos.
Por um conjunto de fatores que não cabe aqui examinar, o antigo estado cliente da superpotência na prática tomou as rédeas na política de relações com o Estado Palestino, que continua submetido a uma série de restrições e a um tratamento não-paritário.
Recente episódio na cidade de Hebron, na margem ocidental do Jordão, sublinha até que ponto podem levar as invasões e tropelias do Exército israelense.
Na sexta-feira passada, destacamento militar que procurava um militante do Hamas, entrou no nascer do dia em apartamento e fuzilou o palestino Omar al-Qawasmeh, de 65 anos. O pobre homem morreu dormindo. Estava obviamente desarmado e muito provavelmente os soldados do Tsahal[7] o confundiram com o seu sobrinho Wael Bitar, que seria, segundo fontes castrenses, ‘membro sênior da infraestrutura armada do Hamas’.
De início, para tentar diminuir o impacto do assassinato a sangue frio, a radio israelense teria dito que Omar buscara fugir dos soldados. Depois, tal ‘versão’ da ocorrência foi silenciada, diante das manchas de sangue no colchão, lençóis e travesseiro da vítima.
Posteriormente, os militares apreenderam o procurado Wael Bitar – que fora libertado na véspera pela Autoridade Palestina – e emitiram um primeiro comunicado em que ‘deploram’ o ocorrido.
No mesmo sentido, o Exército israelense determinou ao comandante da divisão que opera na Margem Ocidental ‘uma rápida investigação sobre a morte’ de Omar al-Qawasmeh.

( Fonte: International Herald Tribune )

[1] V. Orientalism, Edward W. Said, Vintage Books, New York, 1994.
[2] Assim era denominada a Corte do Sultão, na época do Império Otomano.
[3] Batalha entre agosto e setembro de 1922.
[4] V. sobre a situação dos caldeus o meu blog de 19.XII.2010 (C.R. LXIII, Perseguições contra os cristãos no Iraque).
[5] Ur-problem significa problema primevo ou antigo. O termo pode ser empregado para apontar origem causal.
[6] Deflagrada por Israel em 5 de junho de 1967.
[7] Nome em hebraico do exército de Israel.

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