A memória pode estar um tanto apagada. Afinal, os fastos de 1848 – em que como rastilho de pólvora a revolução se alastrara pela Europa saída do Congresso de Viena, após a derrota de Napoleão, com a sobrevida do absolutismo monárquico – hoje constituem relato quase esquecido, enfurnado em velhos livros de História.
E, no entanto, essa teimosa planta, maltratada e escarnecida pelos déspotas de terras e gentes tão diversas, ressurge sempre, ela que é filha da esperança e de uma visão generosa de existência mais justa e equânime, mais livre e digna.
Há absurdos e patranhas que os tiranos e seus lacaios se empenham em repisar,como se a sórdida frase de Goebbels de que a repetição da mentira lhe desse foros de verdade. Dessarte, as ditaduras e as chamadas ‘democracias’ adjetivadas gritam que os direitos humanos são imposição do Ocidente, e que os seus princípios nada têm a ver com os costumes ancestrais de outras culturas e civilizações.
Nos regimes de exceção, arrimados na força do fuzil, a liberdade é a gata borralheira, escarnecida e vilipendiada por seus arautos e capangas, porém temida nos amplos gabinetes dos poderosos de turno.
Desde a Grécia Antiga, o tirano pode ter muitos nomes – rei, presidente, primeiro-ministro, secretário geral do partido, etc. – mas uma só natureza, que é o mando sem peias nem limites, apoiado nas múltiplas formas de violência, da subjacente ameaça à deslavada arbitrariedade.
Essas criaturas vivem do medo, com que pensam submeter o respectivo povo, mas ao cabo deste mesmo medo viram prisioneiros, eis que será a consciência da própria fraqueza que há de reger a todos os seus atos. Como reza a expressão, o fuzil terá muitos usos, menos o de sentar-se sobre ele.
As revoluções irrompem nos instantes mais incôngruos e inesperados. Na afável Tunísia, um país pequeno no Magreb, que depende dos dinheiros do turismo, iria crepitar o fogo da revolução, causada por ignóbil injustiça praticada por uma policial contra Mohamed Bouazizi, um pobre universitário que se tornara verdureiro por necessidade. Ao pôr fogo às vestes, nessa linguagem do desespero que vai do longínquo Vietnam a todos os páramos da terra, Bouazizi não sabia que no seu supremo sacrifício atearia incêndio que destruiria a ditadura de Ben Ali, e para assombro de muitos cortesãos se espalharia por toda a região.
Nos países árabes, a democracia, pelos agravos que sofre, não é sequer a tenra plantinha de Mangabeira. Sem desdourar-lhe o nome, é quase um inço, a crescer nas gretas que as ditaduras não conseguem fechar de todo.
O exemplo tunisiano repercute na sublevação egípcia, em que a oposição a Hosni Mubarak, há trinta anos na presidência, se arroja às praças e aos choques com os esbirros do poder. Mubarak tem muitos aliados e não há de abandonar facilmente o cetro a que se apega. A mancha vermelha da insurreição de Túnis, mal ou bem, vem prevalecendo, a despeito de permanecerem no palácio muitos trânsfugas do regime corrupto de Ben Ali.
As verdadeiras revoluções, todavia, além de devorarem os próprios filhos, abominam os ditos moderados. E, enquanto guardarem forças – e não tiverem pelo caminho a reação de Thermidor[1] - prosseguirão na sua rota de implantação dos próprios princípios básicos.
Os distúrbios no Egito – que se não confinam ao Cairo, mas se extendem a várias cidades importantes como Alexandria – podem não ter o desfecho reservado ao levante de Túnis. Se Mubarak está velho e se seu governo de tantas nominais reeleições se acha em extremo desgastado, ainda dispõe de aliados poderosos, que podem preferir as certezas de um status quo às dúvidas e interrogações dos novos regimes. Malgrado os oportunistas – e em todas as revoluções eles estão presentes -, o móvel das manifestações na praça egípcia está na aspiração da liberdade e de sua aliança com melhores tempos e mais justiça.
Se o exército – como na Tunísia – se negar a atirar sobre os revoltosos, e a elite dominante – ou parte dela – for acometida pelo terror incoercível, os céus no Egito podem mostrar-se sem as nuvens da opressão. É decerto esperança fugidia a que agita tanta gente desesperada.
A sua principal força reside no menosprezo da ameaça e do aparente desequilíbrio de forças. No fim de contas, eles crescem por causa da própria fraqueza, eis que pouco ou nada têm a perder.
[1] Mês do calendário revolucionário que marca a queda de Robespierre e de seus aliados do Comitê de Salvação Nacional, e o consequente restabelecimento das forças da restauração conservadora (1794).
quinta-feira, 27 de janeiro de 2011
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2 comentários:
A onda de revoltas é interessante, mas olhemos um pouco mais adiante. Democracia pode ser o que querem os 50 mil revoltosos, mas o que será que farão 80 milhões de egípcios (e outros) se tiverem a oportunidade de ir às urnas livremente? Eu ficaria muito surpreso se não fosse a Irmandade Islâmica e o fundamentalismo. O blogueiro conhece muito bem essa história e como acaba. Mais uma vez a democracia será usada para acabar com ela própria. Esse ciclo só terminará quando houver desenvolvimento e menos pobreza.
Em matéria de revolução, os exemplos do passado nos apontam possibilidades, que podem ou não concretizar-se. Já falei no meu blog das diversas revoluções,inclusive aquelas traídas, ou abortadas. A luta do homem pela liberdade é luta comprida, cujo desfecho não se afigura previsível.Em qualquer situação, a esperança é sempre importante. Sem ela, costuma reinar outro tipo de paz, a dos cemitérios.
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