terça-feira, 9 de julho de 2019

Será que defensores de refugiados merecem cadeia ?


           
        
           Durante um ano o português Miguel Duarte fez parte da tripulação de um navio de resgate de migrantes no Mediterrâneo. Como físico e matemático, ajudava nas traduções a bordo e em escaleres fazia contato com os náufragos (sírios e africanos ) que vinham da Líbia para tentar entrar na Itália.
              O seu caso é emblemático,  e desvela a monstruosidade que preside à repressão dessa migração. Em 2017, o navio Iuventa, de ONG alemã, foi apreendido na Itália em inquérito por alegada cumplicidade com tráfico humano.

               Um ano depois, Duarte recebe, bem como nove de seus companheiros no navio, carta da Justiça italiana em que é informado estar sendo investigado por "auxílio à imigração ilegal". Se condenado, está sujeito a 20 anos de prisão.
                Segundo Duarte declarou à Folha: "É difícil imaginar uma coisa dessas. Sabíamos que havia muita gente que não concordava com o que fazíamos, mas nunca nos ocorreu que pudesse haver uma criminalização da ajuda humanitária."
                O último caso a ser divulgado é o da alemã Carola Rackete, capitã do Sea Watch, que já foi objeto deste blog. Diante do risco de suicídio no grupo, que estava há duas semanas sem poder desembarcar, Rackete forçou o afastamento de uma lancha da polícia, que tentava impedi-la de atracar.
                E uma corajosa juíza a liberou da detenção que lhe fora aplicada. O ministro Matteo Salvini lamentou a decisão e disse que a capitã deve ser expulsa do país pois é "perigosa para a segurança nacional" (sic). É de notar-se o viés fascista dessa afirmação,a qual revela o ressurgimento do fascismo jurídico, de resto refletido no tratamento dado às heroínas ´sírias Sarah Mardini e a irmã Yusra, que ficaram justamente famosas em 2015, por se jogarem no mar, e nadarem por três horas puxando o barco em que estavam com outros refugiados, que tentava chegar à Grécia. Salvaram 18 pessoas, receberam medalhas pelo heroismo, e Yusra competiu como nadadora nas Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016. Em agosto de 2018, Sarah, então voluntária em uma ONG de resgate, foi presa e solta sob fiança após detenção de 107 dias (ela está sujeita à condenação de até 25 anos de cárcere) !

               É de notar-se que  as ONGs começaram a resgatar pessoas quando a Europa ocidental não mais conduziu ações de busca e salvamento no mar - que são mandatórias pelo Direito do mar. A Itália antes do atual gabinete, em que populistas e neo-fascistas partilham o poder, organizara, para sua honra, a operação  Mare Nostrum (que salvou cerca de 150 mil migrantes).   

                 Há muita hipocrisia no tratamento dispensado pelo Ocidente à Líbia. Aquele país, já antes do assassínio de Muamar Kaddafi transformara-se na prática em um failed State (estado fracassado), em que a governança não respeita a condições mínimas de civilidade. Com efeito, se outros países africanos pudessem contribuir para a situação acima referida, o problema mais sério se acha na Líbia, que está sob conflito desde 2014. No entanto, deve-se frisar que muitas das investigações que pretendem culpabilizar as ONGs não chegam a tornar-se processos formais. Nesse contexto, é relevante ter-se presente o que assevera o especialista em políticas migratórias Paolo Cuttita, da Universidade Vrije de Amsterdam - a criminalização  do trabalho das ONGs ocorre em três níveis: legislativo, discursivo e judicial.
                É de assinalar-se, outrossim, a observação de Cuttita que as investigações preliminares abertas contra as ONGs não passam ao nível de processo  judicial - eis que segundo aduz o estudioso "fica claro que elas estão cumprindo um dever", vale dizer o dever de resgatar pessoas em risco no mar, que é dispositivo presente em leis e tratados internacionais sobre o Mar.

                  Já no plano discursivo, a Frontex (que sucedeu à operação Mare Nostrum) sugeriu em 2016 que as ONGs estariam apoiando traficantes. Tal mensagem foi encampada por políticos italianos, que chegaram a utilizá-la em campanhas eleitorais.
                    Por sua vez, estudo da Universidade Goldsmith, de Londres, analisou argumentos usados contra essas ONGs. E dentre esses, a de que sua existência acabou incentivando mais gente a realizar a perigosa travessia. No entanto a pesquisa determinou que o aumento das travessias no decorrer de 2016 verificou-se em ritmo condizente com o de anos anteriores, quando a atuação das ONGs era limitada.
                      Na realidade, o verdadeiro responsável pelo fenômeno seria o agravamento da crise em países africanos, e sobretudo na Líbia, cujo conflito civil explodira a partir de 2014. Como refere o texto da citada pesquisa: "Diante da horrenda situação na Líbia, migrantes têm pouca escolha além da travessia por mar, com ou sem a ação de embarcações de busca e resgate ativo".

                         O número de migrantes que chegam à Europa pelo Mediterrâneo diminui em quase 90% de 2015 para 2018: de mais de um milhão para 141 mil. Em 2019 foram 36 mil até agora. A percentagem de mortes informadas, porém, cresceu de 0,3% do total em 2015 para 1,6% em 2018 e 1,8% neste ano.
                           Cuttita assinala que os governos estão fazendo pressão sobre o Judiciário :" Na Itália, Salvini repetidamente pede a promotores que prendam representantes de ONGs de salvamento e acusa juízes de agirem com motivações políticas, quando eles absolvem tais pessoas."

                              A "criminalização da solidariedade", como denominam especialistas, não ocorre só na Europa. Nos Estados Unidos, "bons samaritanos" que ajudam migrantes sem documentos também estão sendo processados.
                             O caso mais revoltante é o de Scott Warren, da ONG "No more deaths", que foi preso em 2018 por dar água e alimento para migrantes no Arizona. Ele será julgado de novo, após o júri não lograr um veredito (hung jury) no primeiro julgamento, realizado no mês passado.
  
                            Já em Portugal, Miguel Duarte agora espera quanto à evolução (ou involução) de seu processo criminal.  Campanha de financiamento coletivo para ajudá-lo em sua defesa já arrecadou  53,7 mil Euros (cerca de R$ 230 mil), cinco vezes mais do que os coletores se haviam prefixado como objetivo.
                               Por sua vez, o procurador italiano diz que o Iuventa mantinha contato com traficantes. Segundo Duarte, isto é falso: "Nosso trabalho era patrulhar as águas internacionais, sempre em coordenação com a autoridade italiana. Todos os que resgatamos foram entregues à autoridade italiana." O Iuventa salvou catorze mil pessoas.

                               `Por fim, Duarte afirma que não sente medo de ser preso, mas frustração. "Nos fizeram usar tanta energia e recursos para a defesa de nós próprios, em vez de usá-los para o trabalho no mar". E, com serenidade, conclui: "Sabemos que os migrantes continuam a vir, e acabam por não ter quem os resgate."

(Extraído da reportagem de Flávia Mantovani, na Folha de S. Paulo: "Europa prende ativistas e criminaliza resgate de migrantes para frear fluxo".)


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