quarta-feira, 10 de julho de 2019

Luzes da Cidade


                         

         Como tinha algumas dúvidas sobre a película de Charles Chaplin, City Lights, voltei outro dia a ela. Devo confessar que as minhas dúvidas permaneceram, mas de uma forma mais elaborada.

            Chaplin é decerto o maior gênio do cinema. Emigrando da Inglaterra, ele aportou nos States, e dedicou-se à  cinematografia. Não, caro leitor, não estou repetindo baboseiras. Nas minhas passagens pelos Estados Unidos - por um capricho da deusa Fortuna nunca lá servi em posto permanente, na minha carreira diplomática de que guardo prazerosa memória.  Mas sempre essa mesma caprichosa divindade consentiu em que passasse longas semanas a serviço diplomático, máxime na área multilateral, e cá não estou para queixar-me da sorte.

                 Em alguma estada mais recente naquela cidade, que fica às margens do Hudson, já tivera a fortuna de assistir a uma série sobre o primeiro Carlitos, em que ele vai desvelando a própria arte ainda de forma um tanto burlesca. São as obras primitivas de Chaplin, desse grande, para muitos o maior de todos, filmógrafo. Então atravessamos, com as oportunidades que a tevê de lá sói ofertar, pela era dos pastelões, coletânea dos shorts primevos de quem seria o célebre vagabundo,  já com seu chapéu de coco, e enfrentando os bullies da primeira comédia, que trazem nas sobrancelhas grossas o prenúncio do pavio curto do gênero. Esse curioso vagabundo, com o seu chapéu paradigmático, costuma vencer a maioria das paradas, e os filmecos são como os anúncios de alguém que irá distinguir-se de tantos outros astros, que então repontavam,  malgrado toda a inventiva que porventura hajam apresentado.

                Há algo decerto indescritível nesta figura de vaudeville que o gênio chaplinesco cuidou de trazer e mesmo conservar para a eternidade. Quem não terá visto algum filmeco desse genial antivagabundo, histrionicamente enfarpelado em surrado terno negro e o chapeuzinho coco, acompanhado da bengala? Ainda mais o acompanha  estranho bigodinho - que lhe será útil sobremaneira quando esse pequeno e incôngruo gênio da Sétima arte se transportará às Europas para fazer pouco de quem se acreditava mais sério do que todos, ainda mais com as suas cruéis fantasias que transformará em cataclísmica realidade, e de quem, não obstante tudo, Carlitos irá mostrar que mesmo o mais entranhado Mal pode ser objeto de humor que será implacável na própria aparente superficialidade.

                  Mas voltemos a Luzes da Cidade. Se o observarmos com o cuidado de uma segunda visão, descobriremos a perfeição da trama, o humor com o zangado sóbrio (diante da realidade) e generoso depois dos goles de uísque, o amigo que se transforma em verdugo ao despertar, irritado por certo com a realidade da mansão e do mordomo, e o consequente olvido dos ricaços com os favores recebidos (a começar por impedir-lhe o suicídio). Chaplin transforma lugares-comuns em críticas sociais, como no mau-humorado milionário que se esquece dos favores recebidos, e livrar-se do benfeitor, como se fora uma mosca. Temos o mordomo que traz consigo a imagem - hoje perempta - do alegado servilismo do emprego, com a presteza de atender aos caprichos do patrão, mesmo quando ele quer ver-se livre do desinteressado benfeitor da véspera ?

                     Ver os filmes mudos de Carlitos é dar-se conta de como falam alto e preciso sobre as desgraças humanas, e, não obstante, enxergam com ironia quão cômicos podem ser. Tudo isso vestido em perfeita cinematografia - que apenas prescinde da palavra dita - com cômicas passagens de cena. Recordo-me da hilariante intervenção do genial vagabundo em dança apache, em que ele intervém, coerente que é na defesa dos fracos e oprimidos - como então não irromperá na pista do show pondo fim à covarde surra que um brutalhão (o apache) está aplicando na pobre moça indefesa?

                       O que torna universal o humor de Carlitos está na aparente ingenuidade do personagem, que não hesita em saltar da platéia para pôr fim a um espetáculo de inaudita covardia - um homem, sem razão, mas com força. a bater em uma moça bela e indefesa ?

                          É por isso que Carlitos é universal - quando segura uma flâmula vermelha e ei-lo a liderar, para surpresa geral, uma marcha de protesto operário - e ao dissuadir o bêbedo ricaço de um mergulho suicida, para no dia seguinte ser escorraçado da mansão, vítima do incontrolável mau-humor matinal do milionário que, embriagado, queria desmanchar-se em gratidão e presentes?

                        Carlitos é também o mestre do corte que pode ser cômico ou não, mas será sempre encaixado como em seda na tessitura do filme.

                          Com a sua  imensa  filmografia, e inúmeras obras primas, é difícil crer se não terá sido pelo fato de ser inglês ou de esquerda que Chaplin jamais haja recebido um Oscar por tantos de seus filmes de que há muitos através de uma longa presença em Hollywood, e com uma série de obras primas.como O Garoto, O Grande Ditador, A Corrida do Ouro, O Imigrante, O Circo, Tempos Modernos e Monsieur Verdoux, de 1947. O seu último filme é a Condessa de Hong-Kong, de 1967.   

                             Ainda a respeito da falta de Oscar em sua obra, é uma observação que apenas denigre a Academia. Não considero, e mesmo lamento, que Chaplin, no final de sua vida, haja consentido em ser agraciado pelo chamado Oscar  omnibus, que é uma espécie de prêmio de consolação reservado em geral a mediocridades.  É lamentável que o idoso Charles Chaplin tenha assentido a comparecer a uma sessão de distribuição de estatuetas  do Oscar, como se ele fosse uma mediocridade que se agarra ao prêmio da Academia.  É um escândalo que um dos maiores gênios do cinema tenha recebido, em fim de vida, aquela demonstração de preconceito seja contra a sua origem inglesa, seja contra as suas idéias de esquerda, e a circunstância de ser perseguido pelo maccartismo.


(Fontes: Larousse, Dictionnaire du Cinéma (vol.1); filmografia de Chaplin, em especial,  o primeiro Chaplin )

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