Como tinha algumas
dúvidas sobre a película de Charles
Chaplin, City Lights, voltei
outro dia a ela. Devo confessar que as minhas dúvidas permaneceram, mas de uma
forma mais elaborada.
Chaplin é decerto o maior gênio do cinema. Emigrando da Inglaterra,
ele aportou nos States, e dedicou-se
à cinematografia. Não, caro leitor, não
estou repetindo baboseiras. Nas minhas passagens pelos Estados Unidos - por um
capricho da deusa Fortuna nunca lá servi em posto permanente, na minha carreira
diplomática de que guardo prazerosa memória. Mas sempre essa mesma caprichosa divindade
consentiu em que passasse longas semanas a serviço diplomático, máxime na área
multilateral, e cá não estou para queixar-me da sorte.
Em alguma estada mais recente naquela
cidade, que fica às margens do Hudson, já tivera a fortuna de assistir a uma
série sobre o primeiro Carlitos, em
que ele vai desvelando a própria arte ainda de forma um tanto burlesca. São as
obras primitivas de Chaplin, desse grande, para muitos o maior de todos,
filmógrafo. Então atravessamos, com as oportunidades que a tevê de lá sói
ofertar, pela era dos pastelões, coletânea dos shorts primevos de quem seria o célebre vagabundo, já com seu chapéu de coco, e enfrentando os bullies da primeira comédia, que trazem nas
sobrancelhas grossas o prenúncio do pavio curto do gênero. Esse curioso vagabundo,
com o seu chapéu paradigmático, costuma vencer a maioria das paradas, e os
filmecos são como os anúncios de alguém que irá distinguir-se de tantos outros
astros, que então repontavam, malgrado
toda a inventiva que porventura hajam apresentado.
Há
algo decerto indescritível nesta figura de vaudeville
que o gênio chaplinesco cuidou de trazer e mesmo conservar para a eternidade.
Quem não terá visto algum filmeco desse genial antivagabundo, histrionicamente enfarpelado em surrado terno negro
e o chapeuzinho coco, acompanhado da bengala? Ainda mais o acompanha estranho bigodinho - que lhe será útil
sobremaneira quando esse pequeno e incôngruo gênio da Sétima arte se
transportará às Europas para fazer pouco de quem se acreditava mais sério do
que todos, ainda mais com as suas cruéis fantasias que transformará em
cataclísmica realidade, e de quem, não obstante tudo, Carlitos irá mostrar que
mesmo o mais entranhado Mal pode ser objeto de humor que será implacável na própria
aparente superficialidade.
Mas voltemos a Luzes da Cidade. Se o observarmos com o
cuidado de uma segunda visão, descobriremos a perfeição da trama, o humor com o
zangado sóbrio (diante da realidade) e generoso depois dos goles de uísque, o
amigo que se transforma em verdugo ao despertar, irritado por certo com a
realidade da mansão e do mordomo, e o consequente olvido dos ricaços com os
favores recebidos (a começar por impedir-lhe o suicídio). Chaplin transforma
lugares-comuns em críticas sociais, como no mau-humorado milionário que se
esquece dos favores recebidos, e livrar-se do benfeitor, como se fora uma mosca.
Temos o mordomo que traz consigo a imagem - hoje perempta - do alegado servilismo do emprego, com a presteza de
atender aos caprichos do patrão, mesmo quando ele quer ver-se livre do
desinteressado benfeitor da véspera ?
Ver os filmes mudos de
Carlitos é dar-se conta de como falam alto e preciso sobre as desgraças
humanas, e, não obstante, enxergam com ironia quão cômicos podem ser. Tudo isso
vestido em perfeita cinematografia - que apenas prescinde da palavra dita - com
cômicas passagens de cena. Recordo-me da hilariante intervenção do genial
vagabundo em dança apache, em que ele intervém, coerente que é na defesa dos
fracos e oprimidos - como então não irromperá na pista do show pondo fim à
covarde surra que um brutalhão (o apache) está aplicando na pobre moça
indefesa?
O que torna universal o humor de Carlitos está
na aparente ingenuidade do personagem, que não hesita em saltar da platéia para
pôr fim a um espetáculo de inaudita covardia - um homem, sem razão, mas com
força. a bater em uma moça bela e indefesa ?
É por isso que Carlitos é universal - quando
segura uma flâmula vermelha e ei-lo a liderar, para surpresa geral, uma marcha
de protesto operário - e ao dissuadir o bêbedo ricaço de um mergulho suicida,
para no dia seguinte ser escorraçado da mansão, vítima do incontrolável
mau-humor matinal do milionário que, embriagado, queria desmanchar-se em
gratidão e presentes?
Carlitos é também o
mestre do corte que pode ser cômico ou não, mas será sempre encaixado como em
seda na tessitura do filme.
Com a sua imensa filmografia, e inúmeras obras primas, é
difícil crer se não terá sido pelo fato de ser inglês ou de esquerda que
Chaplin jamais haja recebido um Oscar por tantos de seus filmes de que há muitos
através de uma longa presença em Hollywood, e com uma série de obras
primas.como O Garoto, O Grande Ditador, A Corrida do Ouro, O Imigrante, O
Circo, Tempos Modernos e Monsieur Verdoux, de 1947. O seu último filme é a
Condessa de Hong-Kong, de 1967.
Ainda a respeito
da falta de Oscar em sua obra, é uma observação que apenas denigre a Academia.
Não considero, e mesmo lamento, que Chaplin, no final de sua vida, haja
consentido em ser agraciado pelo chamado Oscar
omnibus, que é uma espécie de prêmio de consolação reservado em geral a
mediocridades. É lamentável que o idoso Charles
Chaplin tenha assentido a comparecer a uma sessão de distribuição de estatuetas do Oscar, como se ele fosse uma mediocridade
que se agarra ao prêmio da Academia. É
um escândalo que um dos maiores gênios do cinema tenha recebido, em fim de
vida, aquela demonstração de preconceito seja contra a sua origem inglesa, seja
contra as suas idéias de esquerda, e a circunstância de ser perseguido pelo
maccartismo.
(Fontes: Larousse,
Dictionnaire du Cinéma (vol.1); filmografia de Chaplin, em especial, o primeiro Chaplin )
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