domingo, 15 de abril de 2018

A ex-Cidade Maravilhosa


                                      
          Se vim criança ainda para o Rio de Janeiro, e os anos passaram desde então, e como!, tampouco me esqueci dos encantos do Rio daqueles tempos, ao findarem os anos da presidência de Eurico Gaspar Dutra, enquanto os olhos do Brasil já cuidavam dos humores do solitário de São Borja, cuja popularidade crescia, enquanto os escândalos da vez cuidavam da breve partida para as terras do olvido daquele que ironicamente ora seguia os acerbos ritos que acompanham as despedidas.
           A memória pode ser um coquetel confuso e por vezes disparatado, mas o menino órfão que aqui chegara, com temporária estada na avenida Antônio Carlos, já um tanto se tinha habituado pela sorte madrasta a viver em cômodos que não eram de sua mãe, mas sim emprestados, com aquela boa vontade que é reservada a órfãos e viúvas.
            Mas a despeito dos eventuais dissabores, ainda não me esqueceu o descerrar das cortinas de nova estação em nossas vidas. Naqueles tempos, era abissal a diferença dos currículos escolares entre a província e a Capital da República. Tinha de preparar-me para os exames de admissão ao  ginásio. Como não sobravam cobres para pagar professoras,  minha mãe tinha de cumprir mais um mister, que o de preparar-me para vencer o fosso da passagem para o ginásio.
            Se lá no Anchieta porto-alegrense estava sempre entre os primeiros da turma, aqui na então capital da República, tínhamos de fazer das tripas coração. Minha querida Mãe nunca havia sido professora, e por isso tinha pouca paciência. De minha parte, bom aluno no Rio Grande, virara interrogação no Rio de Janeiro. Crescia a pressão dos dias à medida que o exame se acercava. Maria, minha mãe, ao contrário de tantas outras genitoras, não estava habituada ao controle do temperamento que exige o mister de instrutora.
             Ao cabo de tudo, no entanto, acabei eu por apreender matérias que lá na província de São Pedro de então nunca me haviam sido desveladas em tal amplitude.
              E eu, criança ainda, tentava habituar-me àquele carrossel em que fora transformada a nossa existência com o desastre no vôo da Varig, nas vizinhanças da Pedra Redonda, no rio Guaíba, no desgraçado final de torrencial manhã, a vinte de junho de 1944. 
              Os nervosos gritos de minha mestra de emergência, decerto angustiada pelas barreiras que as então diferenças nos gabaritos escolares punham entre capital e província, eu acabaria por internalizá-los.  Ela, por sua vez, ao capacitar-se de que, de algum modo, o filho lograria superar aquele desafio criado pelos desencontros da então burocracia do ensino,  iria, gradativamente, se acalmando, e com isso transmitindo a mim a necessária confiança para enfrentar aquela barreira que destino adverso jogara sobre nós.
              Sem sabê-lo, viúva e órfão viviam os áureos tempos da capital federal.  Como aquelas pedrinhas miúdas que o garimpeiro a princípio ignora, o Rio de Janeiro de então oferecia nas suas praças e ruas a tranquilidade que hoje só se depara em antigos musicais da Metro. Não ouviam - pois não íam, pelo próprio luto - nos bailes de Carnaval a marchinha de André Filho, que hoje ingênua nos parece, mas antes, nem tanto. Pois nós vivíamos na Cidade Maravilhosa, e não dávamos a tal circunstância o valor que ela merecia.
              A mim, que, criança ainda, fora dado conhecer da Capital Federal, e que depois o destino ensejaria receber das mãos de Juscelino Kubitschek de Oliveira o  diploma de Consul classe K, com que iniciava, como primeiro de turma,  a minha carreira diplomática que se estenderia por cinquenta anos, que a sorte e a diligência faria bem vividos, a desventura paterna me daria a força e a persistência de enfrentar os desafios da Sorte e ignorar o mau-caratismo de personagens que a História - aquela de h maiúsculo - cuidará de reservar, malgrado os próprios ingentes esforços, o lugar que fazem por merecer.
                O Rio de Janeiro atravessara os séculos como sede do Poder Colonial, depois do Reino e, mais tarde,  do Império e, com o golpe militar de 15 de novembro de 1889, lá se foi a única verdadeira república nas Américas do Sul.
                Agora, por uma série de circunstâncias, algumas acima aludidas, a antiga Cidade Maravilhosa enfrenta crise existencial.  Devastada pela ladroagem e a inépcia,  o Rio deixou de ser aquele centro acolhedor e sereno que conhecemos por décadas, e como de sólito acontece, não dávamos o valor que tal merecia. Tem isso a ver com a transferência da Capital, que JK soube encarnar na sua Administração? Seria hipócrita negá-lo, mas tampouco adianta transferir a culpa para aquele grande presidente, que transformaria em realidade o mandamento constitucional, que muitos lá tinham deixado, na Constituição, esquecido.  A necessidade decerto datava da colônia, e a abertura dos sertões e do vasto interior brasílico esperou décadas por alguém com a têmpera de JK.
                  O Rio de Janeiro, tantos anos embalado por sediar a capital da Colônia, do Reino, do Império e até da República, decerto não surpreende se sofreu com a não tão súbita perda, mas terá tido muito tempo, desde Sette Câmara, para ajustar-se aos novos ventos.
                    A crise que ora vive a dita Cidade Maravilhosa decorre de um misto de corrupção e de incompetência. Se o problema da corrupção é do Brasil, ela também afeta - e como! - o Rio de Janeiro. Essa questão da desordem que se generaliza torna aqui no Rio, a antes Cidade Maravilhosa, o que, se por vezes afeta a paisagem, muita vez se espalha por toda parte.
                       Com isso perdemos todos, excetuada talvez a mala vita, que parece ir de vento em popa, quanto sopram ventos ruins nessa Cidade dita Maravilhosa, que de repente, não se sabe numa terça ou numa quinta-feira, desapareceu de nosso visor.
                       Aonde a segurança que fazia o jovem adolescente ir da Garcia d'Ávila até o Ponto Seis, pelas ruas de paralelepípedo  da Visconde de Pirajá até o Posto Seis, na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, seguindo a linha do bonde que já fora recolhido, e tudo isso sem jamais sofrer qualquer desconforto ?
                        Toda essa cambalhota que deu a vida no Brasil dos anos cinquenta para cá foi um processo longo. Nos tempos de Figueiredo, se defendia o Brasil grande, e para tanto parecia indispensável o crescimento demográfico livre dos controles da natalidade.
                        Tal política da natalidade às avessas não sabia o que era jogar neste mundo, vasto mundo tanta gente para a qual o Brasil grande não dispunha dos meios e instrumentos necessários para forjar os artífices da potência que os planejadores de então pensavam possível. Bastava vencer as insídias do controle da natalidade e dá rédea livre a uma grande população brasílica!
                          Sem o saber, se preparáva uma realidade que a muitos  surpreenderia.      
                           E hoje o Rio de Janeiro, a Cidade Maravilhosa da marchinha, se transformou em uma espécie de ovo da Serpente, em que se consomem 'n' missões salvadoras, mas entre buscar a grandeza do Brasil-potência, e o que agora se nos depara, que saudades grandes e apertadas sentimos daquele tempo em que éramos felizes e não sabíamos!

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