Se vim criança
ainda para o Rio de Janeiro, e os anos passaram desde então, e como!, tampouco
me esqueci dos encantos do Rio daqueles tempos, ao findarem os anos da
presidência de Eurico Gaspar Dutra, enquanto os olhos do Brasil já cuidavam dos
humores do solitário de São Borja, cuja popularidade crescia, enquanto os
escândalos da vez cuidavam da breve partida para as terras do olvido daquele
que ironicamente ora seguia os acerbos ritos que acompanham as despedidas.
A memória pode ser um coquetel confuso e
por vezes disparatado, mas o menino órfão que aqui chegara, com temporária
estada na avenida Antônio Carlos, já um tanto se tinha habituado pela sorte
madrasta a viver em cômodos que não eram de sua mãe, mas sim emprestados, com
aquela boa vontade que é reservada a órfãos e viúvas.
Mas a despeito dos eventuais
dissabores, ainda não me esqueceu o descerrar das cortinas de nova estação em
nossas vidas. Naqueles tempos, era abissal a diferença dos currículos escolares
entre a província e a Capital da República. Tinha de preparar-me para os exames
de admissão ao ginásio. Como não
sobravam cobres para pagar professoras,
minha mãe tinha de cumprir mais um mister, que o de preparar-me para
vencer o fosso da passagem para o ginásio.
Se lá no Anchieta porto-alegrense
estava sempre entre os primeiros da turma, aqui na então capital da República,
tínhamos de fazer das tripas coração. Minha querida Mãe nunca havia sido
professora, e por isso tinha pouca paciência. De minha parte, bom aluno no Rio
Grande, virara interrogação no Rio de Janeiro. Crescia a pressão dos dias à
medida que o exame se acercava. Maria, minha mãe, ao contrário de tantas outras
genitoras, não estava habituada ao controle do temperamento que exige o mister
de instrutora.
Ao cabo de tudo, no entanto, acabei
eu por apreender matérias que lá na província de São Pedro de então nunca me
haviam sido desveladas em tal amplitude.
E eu, criança ainda, tentava habituar-me àquele
carrossel em que fora transformada a nossa existência com o desastre no vôo da
Varig, nas vizinhanças da Pedra Redonda, no rio Guaíba, no desgraçado final de
torrencial manhã, a vinte de junho de 1944.
Os nervosos gritos de minha mestra
de emergência, decerto angustiada pelas barreiras que as então diferenças nos
gabaritos escolares punham entre capital e província, eu acabaria por
internalizá-los. Ela, por sua vez, ao
capacitar-se de que, de algum modo, o filho lograria superar aquele desafio
criado pelos desencontros da então burocracia do ensino, iria, gradativamente, se acalmando, e com isso
transmitindo a mim a necessária confiança para enfrentar aquela barreira que destino
adverso jogara sobre nós.
Sem sabê-lo, viúva e órfão viviam
os áureos tempos da capital federal. Como
aquelas pedrinhas miúdas que o garimpeiro a princípio ignora, o Rio de Janeiro
de então oferecia nas suas praças e ruas a tranquilidade que hoje só se depara em
antigos musicais da Metro. Não ouviam - pois não íam, pelo próprio luto - nos
bailes de Carnaval a marchinha de André Filho, que hoje ingênua nos parece, mas
antes, nem tanto. Pois nós vivíamos na Cidade Maravilhosa, e não dávamos a tal
circunstância o valor que ela merecia.
A mim, que, criança ainda, fora
dado conhecer da Capital Federal, e que depois o destino ensejaria receber das
mãos de Juscelino Kubitschek de Oliveira o diploma de Consul classe K, com que iniciava,
como primeiro de turma, a minha carreira
diplomática que se estenderia por cinquenta anos, que a sorte e a diligência
faria bem vividos, a desventura paterna me daria a força e a persistência de
enfrentar os desafios da Sorte e ignorar o mau-caratismo de personagens que a
História - aquela de h maiúsculo - cuidará de reservar, malgrado os próprios
ingentes esforços, o lugar que fazem por merecer.
O Rio de Janeiro atravessara os
séculos como sede do Poder Colonial, depois do Reino e, mais tarde, do Império e, com o golpe militar de 15 de
novembro de 1889, lá se foi a única verdadeira república nas Américas do Sul.
Agora, por uma série de
circunstâncias, algumas acima aludidas, a antiga Cidade Maravilhosa enfrenta
crise existencial. Devastada pela
ladroagem e a inépcia, o Rio deixou de
ser aquele centro acolhedor e sereno que conhecemos por décadas, e como de
sólito acontece, não dávamos o valor que tal merecia. Tem isso a ver com a
transferência da Capital, que JK soube encarnar na sua Administração? Seria
hipócrita negá-lo, mas tampouco adianta transferir a culpa para aquele grande
presidente, que transformaria em realidade o mandamento constitucional, que
muitos lá tinham deixado, na Constituição, esquecido. A necessidade decerto datava da colônia, e a
abertura dos sertões e do vasto interior brasílico esperou décadas por alguém
com a têmpera de JK.
O Rio de Janeiro, tantos anos
embalado por sediar a capital da Colônia, do Reino, do Império e até da
República, decerto não surpreende se sofreu com a não tão súbita perda, mas
terá tido muito tempo, desde Sette Câmara, para ajustar-se aos novos ventos.
A crise que ora vive a dita
Cidade Maravilhosa decorre de um misto de corrupção e de incompetência. Se o
problema da corrupção é do Brasil, ela também afeta - e como! - o Rio de
Janeiro. Essa questão da desordem que se generaliza torna aqui no Rio, a antes
Cidade Maravilhosa, o que, se por vezes afeta a paisagem, muita vez se espalha
por toda parte.
Com isso perdemos todos,
excetuada talvez a mala vita, que
parece ir de vento em popa, quanto sopram ventos ruins nessa Cidade dita
Maravilhosa, que de repente, não se sabe numa terça ou numa quinta-feira,
desapareceu de nosso visor.
Aonde a segurança que
fazia o jovem adolescente ir da Garcia d'Ávila até o Ponto Seis, pelas ruas de
paralelepípedo da Visconde de Pirajá até
o Posto Seis, na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, seguindo a linha do bonde
que já fora recolhido, e tudo isso sem jamais sofrer qualquer desconforto ?
Toda essa cambalhota
que deu a vida no Brasil dos anos cinquenta para cá foi um processo longo. Nos
tempos de Figueiredo, se defendia o Brasil grande, e para tanto parecia
indispensável o crescimento demográfico livre dos controles da natalidade.
Tal política da
natalidade às avessas não sabia o que era jogar neste mundo, vasto mundo tanta
gente para a qual o Brasil grande não dispunha dos meios e instrumentos
necessários para forjar os artífices da potência que os planejadores de então
pensavam possível. Bastava vencer as insídias do controle da natalidade e dá
rédea livre a uma grande população brasílica!
Sem o saber, se preparáva
uma realidade que a muitos surpreenderia.
E hoje o Rio de
Janeiro, a Cidade Maravilhosa da marchinha, se transformou em uma espécie de
ovo da Serpente, em que se consomem 'n' missões salvadoras, mas entre buscar a
grandeza do Brasil-potência, e o que agora se nos depara, que saudades grandes
e apertadas sentimos daquele tempo em que éramos felizes e não sabíamos!
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