Não é decerto por acaso que, desde o tempo do império no Brasil, se cunhou a frase ‘para inglês ver’. Tenha-se presente que a superpotência do século XIX era a Inglaterra, então senhora dos mares, com a maior presença política, fundada em predominância econômica e militar.
Para inglês ver, portanto, significava montar uma falsa realidade, que visava a atender, ainda que só na aparência, as exigências feitas por Londres. Através do uso, a frase passou a designar genericamente, na definição do Houaiss ‘para efeito de aparência, sem validez’.
O noticiário policial nos relembra agora uma triste característica de nosso sistema penal. As sentenças de trinta anos, reservadas para os crimes mais graves – inclusive os relativas a sequestro, inseridos na categoria dita hedionda – costumam encolher bastante, ao serem adequadas ao chamado regime de progressão de penas.
Baseando-se em interpretação bastante generosa da Constituição[1], o Supremo Tribunal Federal, através da jurisprudência da progressão de regime, reduz, na prática, o encarceramento dos condenados a um sexto do veredito judicial. Por alegado bom comportamento e outros atenuantes, o período de reclusão pode reduzir-se ainda mais. No entender dos ministros do STF, o preso passaria a fruir do regime de prisão semiaberto, com fins de semana longe da cadeia, no convívio de sua família. O mesmo regime aberto inclui a possibilidade de que o preso saia durante o dia para trabalhar, e volte à noite para o cárcere.
O problema com tais propósitos é que muita vez o seu resultado tende a ser diverso do colimado. Os juízes de execução penal – a autoridade responsável em acolher o exercício do direito ensejado pela jurisprudência do Supremo – atuam a descoberto e tem de conformar-se aos parâmetros da legislação. Cabe ao Ministério Público a ingrata tarefa de barrar o caminho às pretensões de muitos dos encarcerados, defensores que são do interesse da sociedade.
Em nosso país, a aplicação do decantado regime da progressão de regime teve em alguns casos efeitos terríveis que, decerto, não tinham sido levados em conta quando se negou aos crimes hediondos a aplicação de penas mais severas.
Dessarte, a concessão das saídas de fim de semana para pedófilos, traficantes e sequestradores tem tido resultados, segundo o noticiário da imprensa, que deveriam induzir Suas Excelências a reverem seus desígnios, sem dúvida, voltados para a recuperação social do condenado. O problema, no entanto, está na turbadora circunstância de que as categorias acima elencadas tendem a comportar-se de forma a instrumentalizar o benefício penal, que transformam em meio de fuga.
O problema se torna ainda mais grave quando não se restringe ao desaparecimento do criminoso. Não foi o que ocorreu em Goiás, v.g., quando um facínora e pedófilo foi liberto, para matar diversos jovens adolescentes. De que serve para as famílias desses rapazes que o pedófilo esteja de novo em regime fechado ?
Quanto a traficantes que se valham desse regime, para pôr-se ao largo, arrimados no bom comportamento prisional, tampouco deveria surpreender.
O último comprometedor exemplo no capítulo nos fornece a imprensa quanto à fuga de dois condenados pelo sequestro em 2001 do publicitário Washington Olivetto, a saber, o chileno Marco Rodolfo Rodriguez Ortega e o colombiano William Gaona Becerra. Pela tardança com que o recurso do Ministério Público, acolhido pelo juiz, foi levado ao conhecimento da penitenciária de Itaí (onde estavam presos), esses dois criminosos sequestradores na verdade não fugiram do cárcere. Saíram pela porta da frente, alegadamente para o convívio familiar.Pouco importa, parece, que não tenham família no Brasil.
Diante dos fatos, a pergunta é mais do que cabível: que defesa é esta da sociedade, - não por causa de delitos do gênero de colarinho branco – mas por crimes hediondos, com considerável sofrimento - ou morte – inflingido à vítima ? De que valem sentenças de trinta anos – senão para manchetes de jornais – se são transmutadas também para traficantes, pedófilos e sequestradores pela varinha de condão do bom comportamento, para uma prisão fechada de seis anos ?
Há um traço, digamos romântico, nesse virtual condicionamento de penas severas, ditadas pelos autos do processo, em um regime diverso, dito semiaberto, de que se servem os criminosos que são na prática irrecuperáveis. Conforme a prática tem demonstrado com consternadora regularidade, tais concessões são desvirtuadas pelos prisioneiros, que delas se servem, no melhor dos casos, para desaparecerem, mas em outros, para reincidirem na prática que, no passado, os havia condenado à prisão.
Os casos de Goiás e agora o da penitenciária de Itaí são inaceitáveis. Como poderemos definir a convivência com tais clamorosos erros, sem que providências críveis sejam tomadas para prevenir esses abusos ?
( Fonte: Folha de S. Paulo )
[1] Também a essa postura se deve atribuir a abstrusa regra de que alguém só pode ser preso quando a causa transitar em julgado, o que significa seja a condenação nas três instâncias, seja, no caso dos réus comuns, a validez da primeira sentença por ausência de recurso. Depõe contra essa prática o exemplo de Pimenta Bueno, assassino confesso e já condenado, mas ainda em liberdade, por não esgotar os recursos a que tem direito.
sábado, 23 de outubro de 2010
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