sexta-feira, 9 de abril de 2010

O Juiz Garzón e os Direitos Humanos

Se acaso existissem dúvidas quanto à isenção dos magistrados espanhóis encarregados desse estranho julgamento do juiz Baltasar Garzón, o sol da realidade do processo, com os seus raios impiedosos, rápido cuida de evaporá-las.
Através de sua atitude arrogante e despojada de quaisquer reservas, o juiz do Supremo Tribunal Luciano Varela escarnece não só da imagem tradicional da Justiça, mas da própria compostura verbal com que o magistrado deve envolver e preservar a respectiva aparência de isonomia e equanimidade.
Seria como se este novo Torquemada dissesse : abandonemos as hipócritas mesuras e as calibradas homenagens à suposta manutenção de equidade e imparcialidade na administração dos dispositivos legais. Dessarte, o tribunal se transforma em arena e o manietado prisioneiro, a quem se despoja dos diáfanos véus da presumida inocência, se descobre nas mãos de juiz-algoz, armado até os dentes de toda a parafernália instrumental para verter em áspera realidade a condenação anunciada.
Para que de tais desígnios não reste sombra fugidia da impressão de juízo aberto, sereno e imparcial, o magistrado Varela não se peja de afirmar certezas e não de colocar quesitos, suscetíveis de serem interpretados e redimensionados. Dessarte, para Varela Garzón prevaricou, extrapolou competências, legislou quando se deveria cingir à aplicação da lei de anistia aos passados crimes do regime franquista.
Não são ameaças de fanfarrão. Ao ousar investir contra o juiz símbolo da Audiência Nacional - tribunal espanhol que investiga delitos contra a Coroa, contra membros do Governo, crimes de terrorismo e narcotráfico, e contra a Humanidade – Luciano Varela não percebe a contradição extrema em que se enleia, colocando no banco dos réus quem arrisca diariamente a própria vida perseguindo os bandidos do ETA e os criminosos do franquismo.
Tampouco Varela – e seu epígono, o magistrado Prego – desejam conceder ao acusado quaisquer possibilidades de defesa pertinente e bem-fundamentada.
Sem embargo, como recorda o advogado Antonio Rato, o artigo 24 da Constituição espanhola estipula que “todas as pessoas têm direito de utilizar os meios de prova pertinentes para sua defesa.”
Como a prevaricação exige dolo específico, o chamado animus prevaricandi que valeria por agir de caso pensado, compreende-se porque no seu afã de condenar Garzón crie dificuldades para Varela a circunstância de que este juiz haja utilizado interpretação normativa compartilhada pelos mais prestigiosos juristas.
A maneira descoberta por Varela – e ora seguida pelo acólito Prego – para contornar tal dificuldade foi o emprego abusivo de vias retorcidas, indiciárias e argumentações inamistosas brandidas pelo juiz da Suprema Corte. Em resumo, Luciano Varela pensa que não precisa de provas para apear Garzón da curul e mantê-lo no limbo de dez a vinte anos fora da vida pública!
Malgrado as firulas jurídicas da dupla, persiste inabalável a posição de Garzón - e de tantos outros juristas de nomeada - de que os crimes contra a Humanidade não são passíveis de anístia.
Para a sua defesa, Garzón carece de testemunhas insignes e de notório saber jurídico para validar a própria tese. Franco e seus seguidores cometeram crimes contra a Humanidade durante a Guerra Civil e nos primeiros anos da ditadura, com a execução sistemática de opositores.
No sinistro indiciamento de quem fundou o direito internacional penal, ao lograr a prisão do ditador Augusto Pinochet, a primeira investigação oficial promovida pelo juiz Garzón sobre o franquismo e a guerra civil espanhola terá sido a motivação inconfessa da torpe tentativa de vingança sob os disfarces da toga.
Como afastar tal pedra do caminho desses novos Fouquier-Tinville[1], mais preocupados em condenar, do que julgar ?
No seu descaramento, não hesitam em cometer ulterior delito processual – o da negação de meios válidos e legais à defesa do réu. Pretendem, desse modo, restringir as testemunhas de defesa a um punhado de expertos que já se manifestara anteriormente em favor de Garzón. E para tanto não trepidam em ignorar a nova lei processual, que admite a figura da testemunha-perito, a qual possa ser interrogada acerca de seus conhecimentos específicos.
Será através do amordaçamento de grandes autoridades em direito humanitário, que os anões da burocracia judiciária – dando as mãos aos grupos filo-franquistas de Manos Limpias (do escritor ultradireitista Blás Piñar) e da Falange Española – lograriam o seu escopo, ao esvaziar a defesa de Garzón. É um procedimento que assemelharia essa corte espanhola à soturna série de tribunais de exceção que, durante o absolutismo, ceifaram a tantos inocentes.
No final, a pantomima judiciária, essa tragédia processual cairá sob o opróbrio do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Ao maquinado ordálio de um grande juiz, cujo renome e excepcionalidade devem ser anátema às mediocridades judicantes, sucederá o processo de execração europeia e internacional da cruel inversão urdida por monstrengo de justiça que ultraja inocentes e premia criminosos.
Será mais uma reedição do tempo dos patifes, de que auguramos curta duração e ignóbil queda.

(Fontes: O Globo, Folha de S.Paulo e El Pais)
[1] Fouquier-Tinville foi o acusador público do Tribunal Revolucionário, durante o período do Terror na Revolução francesa.

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