O total das mortes no estado do Rio de Janeiro já chega a 212, das quais em Niterói 132, e sessenta na cidade do Rio. Essa macabra tabulação parece ainda longe do momento em que todas as vítimas da calamidade dos aguaceiros de abril estejam registradas.
Fala-se na intensidade das chuvas como se fossem as intempéries a causa precípua de tantos óbitos. Na verdade, os temporais e os altos índices pluviométricos não são o fator determinante da calamidade. O que está na raiz da calamidade é a má localização de muitas casas, seja de moradores pobres, de classe média ou abastados.
Situadas em áreas de risco, v.g., em encostas, ou em terrenos sujeitos a enxurradas e avalanches, essas casas – que são na sua esmagadora maioria de gente pobre, em geral favelada – lá estão e não por acaso.
Dadas as dificuldades de encontrar situações mais favoráveis, o espaço supostamente disponível estará em faldas e aclives de montanhas. Se há, portanto, esta razão que leva o morador da favela a construir o seu barraco em condições precárias, tal ‘escolha’ decorre da falta de outras opções, e do desejo de situar-se perto das oportunidades de trabalho.
Esses são os fatores condicionantes no que tange à iniciativa própria do habitante em área de risco.
No entanto, somente a hipocrisia oficial pode circunscrever essa ‘opção de moradia’ à responsabilidade principal do morador. Na realidade, a responsabilidade incumbe, na sua maior parte, seja ao município, seja ao estado.
A ausência do poder estatal dos morros – de que somente agora e ainda de forma simbólica (pela reduzida percentual) o processo começa a ser revertido pelas UPPs – é realidade de décadas. Ela não se reflete apenas no abandono dessas comunidades ao arbítrio do tráfico, mas também ao descaso, senão total anomia em termos de respeito às mais comezinhas precauções em termos de implantação residencial.
A intrínseca feiúra desses aglomerados residenciais – que a demagogia de certas administrações permite ascender a vários andares – é um composto, por conseguinte, do caráter orgânico de seu surgimento, e da total falta de regras em termos de segurança residencial. Tangidos pela pobreza, só respeitam à lei da gravidade.
A prefeitura de Niterói se permitiu inovar, no capítulo, e de forma grotesca. As chuvas ameaçam não mais apenas a casas nas encostas, mas igualmente àquelas situadas em montes, na verdade monturos oriundos de aterros de lixões desativados.
O chamado morro do Bumba – em que, além dos 27 mortos computados, ainda podem existir 150, nos cálculos do governador Sérgio Cabral – foi depósito de lixo entre 1970 e 1985. Não mais utilizado para tal fim a partir daquela data – mas não submetido a qualquer outro processo de sanitização, o morro do Bumba se transformou em espaço residencial.
Assim, o gás metano – originado do material orgânico em decomposição - e o chorume - que é o líquido oriundo das gorduras – já mostravam a ‘qualidade’do terreno de assentamento, e os riscos, tanto sanitários, quanto topográficos incorridos pela comunidade com cerca de trezentas casas.
A própria Universidade Federal Fluminense entregou à prefeitura – então o titular era Godofredo Pinto (PT) – estudo sobre a área, em que o poder municipal foi alertado do risco envolvido.
O atual prefeito, Jorge Roberto Silveira (PDT), disse desconhecer os riscos de tragédia no Bumba. Gera decerto perplexidade tal assertiva para quem exerce em segundo mandato o governo do município de Niterói. Já o seu Vice Godofredo Pinto recebera em 2004 o parecer da UFF.
Ao invés de remover – ou sequer alertar – as comunidades em risco (surgiu agora outra favela, a do Morro do Céu, a 2km do Bumba, igualmente elevada junto de um lixão), o poder municipal preferiu calar. Ou melhor, através de projetos urbanísticos - ‘melhorias’ – contribuíu para incentivar essa ocupação irregular e perigosa.
A própria Defesa Civil do município, segundo o noticiário, esteve no morro do Bumba há pouquíssimas horas do desmoronamento, e não deu qualquer indicação aos moradores sobre a imperiosa necessidade de abandono do local.
Como dizia Péricles na sua famosa oração, se os males sofridos por Atenas eram demasiado grandes para verter lágrimas, a situação em Niterói para esses governantes que se sucedem no poder se afigura demasiado evidente e desmesurada para que se impossa invocar ignorância de tais fatos. Quero crer que o Sr. Jorge Roberto Silveira esteja dizendo a verdade, visto que não tenho elementos objetivos para duvidar de sua sinceridade. Contudo, tal desconhecimento implica, de alguma forma, em alheamento de uma realidade circunstante, o que coloca em questão a sua capacidade enquanto prefeito da cidade de Niteroi.
Por outro lado, para cortar o mal na raiz, a hora não é de medidas cosméticas ou contemporizadoras, que são as vestes corriqueiras da demagogia. Ao contrário da criminosa inação de antecessores seus – que chegaram a permitir a construção de favelas debaixo de vias elevadas – o Prefeito Eduardo Paes publicou ontem no Diário Oficial decreto que declara 158 áreas de risco, afetadas por deslizamentos de terra, em situação de emergência.
Corta-se assim o falso dilema da negação do morador em deixar o local, por não dispor de opção. Como assinalou o prefeito, o perigo de morte não deixa alternativa, porque tudo é preferível a esse mal maior.
Muitos justificam a permanência em locais periclitantes sob o argumento da falta de habitaçãao alternativa. Alvitra-se,mesmo, que o desalojado logo há de procurar outro local de risco para levantar seu casebre.
O chefe do executivo municipal não pode escudar-se na falta de moradia disponível para não afastar o favelado do perigo maior. Nesse sentido, a ação pró-ativa do prefeito Eduardo Paes, não só removendo o morador, mas criando condições para encaminhá-lo a outra habitação digna e segura, é a única alternativa cabível.
Nada fazer – ou invocar a desumanidade de uma remoção forçada – não é só ignorar um perigo letal, um fautor de tragédias futuras. A solução está em procedimentos casados: remover as habitações em áreas de risco, e conduzir os moradores afetados, em tempo hábil, para localizações seguras, e não demasiado afastadas do lugar da primeira residência.
O Estado e suas autoridades, se nada ou muito pouco podem fazer contra as intempéries, tem a capacidade de diminuir-lhes a força devastadora, máxime nos efeitos humanos. A providência do Estado – e não palavras vazias, sem qualquer ação efetiva – representa o meio indispensável para transformar essas calamidades em transtornos ocasionais, e não nas periódicas hecatombes geradas pela incúria e a desídia no exercício do poder público.
( Fontes: O Globo e Folha de S. Paulo )
sábado, 10 de abril de 2010
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Um comentário:
As leis existem: Lei 6766/79 não permitindo parcelamentos em áreas inundáveis; em áreas com declividade superior a 30%; em terrenos que tenham sido aterrados com material nocivo à saúde pública,entre outros.A aplicação na prática depende de um processo de gestão compartilhada entre o poder público, a população esclarecida e uma iniciativa privada menos selvagem.
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