A tática do salami é conhecida. Através da sucessiva retirada de pequenas partes de um projeto, ele se vai descaracterizando progressivamente. À medida em que ‘pequenas’ modificações vão sendo realizadas, cada vez mais o texto em exame se afasta do intuito que lhe deu origem e se torna, por conseguinte, irreconhecível.
Pois é o processo a que ora se submete o PLP 518/09. Desde a formal entrega,pela diretoria do MCCE ( Movimento contra a Corrupção Eleitoral) ao Presidente da Câmara Michel Temer, do projeto de lei de iniciativa popular para barrar a entrada no Congresso dos chamados fichas-sujas, iníciou-se a temporada de caça ao que se designaria como PLP 518/09.
Temer, apesar de receber iniciativa referendada por um milhão e trezentos mil eleitores, não pôde conter, já no ato de entrega, a má-vontade com o projeto. Via “dificuldades” com a barração dos fichas sujas em primeira instância. Era necessário evitar ‘injustiças’e por isso acreditava oportuno elevar a barra para as decisões colegiadas, v.g., a dos tribunais de segunda instância.
Desde então, o PLP 518/09 vem sendo objeto de adiamentos sucessivos - com o PT à frente, o colégio dos líderes lhe tem recusado a atribuição de urgência – e de reformulações, que não tem outro escopo que o de enfraquecê-lo.
Não é à toa que o número dos fichas-sujas no Congresso seja estimado em pelo menos 40% de seus membros. Apoiados no corporativismo dos colegas, submetem a vontade do Povo e o anseio de moralizar as duas Câmaras a uma espécie de anti-tramitação, eis que o propósito não é o de aperfeiçoar o projeto, e torná-lo mais eficaz. O quase transparente desígnio é, na verdade, o oposto: busca-se debilitá-lo, retirar-lhe os dentes, transformá-lo quase num espantalho que pouco ou nada interfira com a despejada entrada e permanência no Congresso da choldra que, como já se disse, ao invés de biografia, possui respeitável ficha corrida.
Na realidade, o que está acontecendo com o PLP 518/9, merece ser examinado com cuidado, pois muito além do caso em epígrafe, denota um desenvolvimento inquietante. A maior parte da Câmara trata uma iniciativa popular – que hoje congrega quase dois milhões de eleitores – como se fora cousa de pouca monta. Tal comportamento, que reflete um exacerbado e alienado corporativismo, grassa livremente nos dois dias de comparecimento de Suas Excelências, a despeito de estarmos às vésperas das eleições de três de outubro.
Excluído o Presidente Michel Temer, que depois dos reparos da entrega, se tem empenhado em forçar os líderes a colocar em votação o projeto, o PLP 518/9 sofre o misto de insolente jogo de peteca, a par de renovadas modificações ao texto inicial.
Pelo visto, os senhores deputados se acreditam acima do Povo do qual deveriam ser os mandatários. Do arremedo dos conselhos de ética, que não são capazes de penalizar as mais graves transgressões ao decoro, se propõem agora manter abertas as cancelas para que ainda mais se inche a quota dos trezentos picaretas.
Os trabalhos do novo relator do projeto, deputado José Eduardo Cardozo (PT/SP) são barômetro de quão baixo se chegou na Câmara, em termos da redação de um texto contra os fichas sujas. A exigência do marco da condenação em tribunal colegiado de segunda instância não mais satisfaz os fichas sujas. Não basta que estejam condenados por crimes graves, como os contra a vida, e por decisões colegiadas. Os nobres deputados querem mais salvaguardas. Por isso, diante da má vontade das bases, o novo relator do PT, negocia mais uma deformação ao PLP 518/09.
Trata-se de garantir os direitos de quem for condenado, em segunda instância, por um crime grave. Dessarte, para preservar-lhe o direito de concorrer às eleições, poderá apresentar recurso ao Superior Tribunal de Justiça. Se os Ministros acatarem o recurso, a inegibilidade fica suspensa e o tribunal é obrigado a dar prioridade ao processo.
Não é comovente ? Pois, por essa porta que o novo redator está negociando, eis que os fichas-sujas alcançam o colimado nível da terceira instância.
Não falta muito para que se repita a melancólica jurisprudência do STF que garante a liberdade dos processados até a passagem em julgado da causa, vale dizer a confirmação do julgamento pela terceira instância.
Noticia-se, outrossim, que o deputado José Eduardo Cardozo pede igualmente compreensão ao MCCE, o movimento que encaminhou o projeto à Câmara. Não creio que deva sequer ser considerada a hipótese de uma concordância do MCCE com tal deslavado menosprezo à vontade popular. Aceitar tais emendas seria tornar-se cúmplice desse travestimento.
( Fonte: O Globo)
quinta-feira, 29 de abril de 2010
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário